O teatro do imaginário coletivo se expande. A Netflix, ciente de que o apetite por nostalgia e mitologia nunca se sacia, anuncia — ou melhor, deixa escapar, pois oficialmente nada está confirmado — que está desenvolvendo uma série live-action ambientada nos Reinos Esquecidos. Um título tão amplo e etéreo quanto o próprio Forgotten Realms, cenário que já serviu de palco para incontáveis campanhas de Dungeons & Dragons, esse jogo que há 50 anos desafia sua própria definição. Jogo? Simulacro narrativo? Ferramenta esotérica de improvisação coletiva? Os acadêmicos ainda debatem. Os investidores, no entanto, só querem saber de uma coisa: há dinheiro nisso?
Porque Dungeons & Dragons, no fim das contas, é um caleidoscópio de histórias, e tentar condensar isso em um produto midiático estruturado é como capturar fumaça com as mãos. Hollywood já tentou antes. Tentou, falhou e, como qualquer aventureiro teimoso, tenta de novo.
Uma ideia que se repete, como um magia de 1º círculo
A ideia de uma série baseada em D&D já foi evocada antes. E sempre da mesma forma: uma sucessão de promessas que nunca se materializam. Houve, em tempos recentes, um projeto similar na Paramount+, onde Rawson Marshall Thurber, um dos tantos alquimistas de Hollywood que tentam transformar chumbo narrativo em ouro de bilheteria, chegou a escrever um piloto. O plano era simples: transformar a fantasia em franquia, a imaginação em moeda corrente. Mas os deuses da televisão foram implacáveis, e o projeto foi engavetado, esmagado pelo peso das fusões corporativas e do capricho dos algoritmos.
Agora, a Netflix, casa de Stranger Things e seus D20 rodando em câmera lenta, parece disposta a tentar de novo.
Desta vez, o projeto está sob os auspícios de Shawn Levy, nome associado à produção de Stranger Things e, mais recentemente, ao Deadpool & Wolverine da Marvel. A ideia de trazer um arquiteto da cultura pop para pilotar a iniciativa parece sensata. Mas há um problema: D&D não é Marvel. Nunca foi e nunca será.
A força dos super-heróis no cinema vem do conceito de mito moderno, uma narrativa arquetípica onde personagens icônicos protagonizam epopeias que se encaixam no esquema de Campbell. Mas Dungeons & Dragons não funciona assim. Seu apelo nunca esteve em um elenco de figuras fixas. Seu fascínio sempre foi a imprevisibilidade do jogo. A série terá que escolher entre seguir os personagens já estabelecidos nos romances e aventuras oficiais ou criar algo do zero.
Mas qual é a vantagem de um Forgotten Realms genérico que não se compromete com Drizzt Do’Urden, Elminster ou qualquer um dos ícones do cenário? O que a série oferecerá ao público além de mais um mundo de fantasia indistinto?
O mito do “universo cinematográfico” de D&D
A própria noção de um “universo compartilhado” para D&D é paradoxal. A essência do jogo não reside em personagens fixos, tramas predefinidas ou mesmo cânones rígidos. O jogo existe na experiência individual de cada mesa, na interpretação singular de cada grupo. Forgotten Realms é um vasto continente onde centenas de narrativas já foram contadas, mas não há um enredo central que possa ser convertido facilmente em produto televisivo.
Mesmo os personagens icônicos da franquia são apenas sombras na caverna platônica do imaginário coletivo. Um universo cinematográfico de D&D, portanto, é um conceito tão artificial quanto tentar embalar um sonho e vendê-lo em prateleiras de supermercado.
No entanto, a insistência persiste. E Hasbro, que já falhou em transformar Magic: The Gathering em um fenômeno audiovisual, parece determinada a continuar tentando com sua outra grande propriedade intelectual.
O problema é que a própria Hasbro tem mostrado um entendimento frágil de sua marca. Sua gestão de Dungeons & Dragons nos últimos anos tem sido marcada por tropeços. Desde a tentativa fracassada de modificar a Open Gaming License (OGL) e tomar controle sobre conteúdo de terceiros, até sua estratégia errática de transformar D&D em uma plataforma de assinatura digital, a empresa parece mais interessada em espremê-lo até a última gota do que em fortalecê-lo como cultura e experiência de jogo.
Entre Hollywood e o tabuleiro
Os desafios são muitos. Primeiro, há o histórico das adaptações de D&D para outras mídias. O filme Dungeons & Dragons: Honra Entre Rebeldes (2023) foi bem recebido, mas não conseguiu transformar o jogo em um fenômeno de bilheteria. Lançá-lo no streaming da Netflix pode até dar nova vida ao projeto, mas, sem continuidade, o esforço se torna apenas mais um caso de hit and miss na trajetória de D&D no audiovisual.
Além disso, a recente estratégia da Hasbro de tratar D&D como uma “marca” e não como um jogo já gerou resistência. A polêmica tentativa de alterar a OGL no início de 2023 provocou uma revolta entre os fãs, que viram na movimentação um ataque à natureza comunitária do RPG. Agora, ao investir na série de Forgotten Realms, a empresa busca, de alguma forma, reparar sua imagem e convencer o público de que o jogo ainda está sob controle de seus jogadores — ao mesmo tempo em que tenta extrair cada gota de monetização possível de sua propriedade.
Os riscos de adaptar um jogo de contar histórias
O dilema, contudo, persiste. Como transformar um jogo de infinitas possibilidades narrativas em uma história fixa? D&D nunca teve um “enredo oficial” no sentido hollywoodiano. Cada grupo de jogadores inventa sua própria versão do mundo. O que acontece quando essa multiplicidade colide com a necessidade de um roteiro estruturado?
E mais importante: que história será contada? Forgotten Realms já foi palco de tramas tão variadas quanto épicas, mas nenhuma delas se presta imediatamente a um formato de série de TV. A série será uma adaptação de alguma campanha clássica? Inventará sua própria trama dentro do cenário? Ou tentará um meio-termo, agradando tanto novos espectadores quanto os fãs veteranos?
Há ainda o problema fundamental de tom. O que a Netflix quer com essa série? Um Game of Thrones medievalesco, sombrio e politicamente carregado? Uma fantasia mais leve e aventuresca, como O Senhor dos Anéis de Peter Jackson? Um híbrido autoconsciente e irônico, como Honra Entre Rebeldes tentou ser?
As questões permanecem sem resposta. E, por enquanto, o projeto vive no limbo das ideias anunciadas e nunca concretizadas. O que sabemos é que a Netflix, sempre ávida por novas propriedades intelectuais para alimentar seu catálogo, está apostando suas fichas em um mundo que, ironicamente, sempre se recusou a ser fixado em uma única forma.
Se esse é o início de um novo ciclo de fracassos ou o primeiro passo para algo maior, só o tempo dirá. Mas como qualquer bom jogador de D&D sabe, rolar os dados é apenas metade da equação. O que realmente importa é como a história será contada.
A Maldição do D20: O Destino de Dungeons & Dragons nas Mãos da Netflix e da Hasbro
Se há algo que os veteranos de Dungeons & Dragons sabem é que, por mais que você planeje, os dados nem sempre rolam a seu favor. E assim como uma jogada ruim pode condenar um grupo inteiro de aventureiros, a trajetória de D&D no audiovisual parece amaldiçoada por falhas críticas em momentos decisivos. Agora, com o anúncio — ainda não confirmado oficialmente — da série live-action de Forgotten Realms na Netflix, a indústria do entretenimento se encontra, mais uma vez, diante da difícil tarefa de transformar um RPG de mesa em um sucesso televisivo.
Mas desta vez há uma nova variável na equação. Dungeons & Dragons não é mais apenas um jogo de nicho jogado por universitários em porões escuros. É uma marca global, um símbolo cultural presente em tudo, de Stranger Things a cafés temáticos. A Hasbro sabe disso e, por isso, sua estratégia se tornou mais ambiciosa — e perigosa.
O Frankenstein corporativo de D&D
A Netflix, por sua vez, não é conhecida por sua paciência. Seus investimentos em fantasia são como um dragão que dorme sobre um tesouro: espetaculares em escala, mas frequentemente voláteis. Buscando replicar o sucesso de títulos como The Witcher. No entanto, nem todas as apostas foram bem-sucedidas. Séries como Cursed e Jupiter’s Legacy foram canceladas após uma única temporada, indicando a volatilidade desses investimentos.
O projeto de Forgotten Realms se insere nessa lógica. A princípio, parece uma jogada segura. Um universo rico, uma base de fãs apaixonada e o respaldo de um dos maiores nomes da cultura pop contemporânea, Shawn Levy. No entanto, a instabilidade da Hasbro e a incerteza sobre o tom e a direção da série sugerem um jogo perigoso.
A questão que ninguém parece querer responder é: quem é o público dessa série? Se for voltada para os veteranos de Dungeons & Dragons, precisará ser fiel ao material original, respeitando a tradição literária dos Reinos Esquecidos, construída ao longo de décadas por autores como R.A. Salvatore e Ed Greenwood; se for voltada para um público geral, necessitará simplificar seus elementos para torná-los acessíveis, correndo o risco de alienar a base de fãs mais fiel. Caso tente agradar os dois lados, pode acabar como Honra Entre Rebeldes: divertida, mas esquecível, incapaz de se firmar como um fenômeno duradouro.
A Hasbro tem os olhos fixos em um objetivo maior. Dungeons & Dragons não é mais apenas um jogo. É uma propriedade intelectual com ambições transmidia. O CEO da empresa, Chris Cocks, já declarou que deseja transformar D&D em um ecossistema digital, com um VTT (Virtual Tabletop) proprietário e uma assinatura paga para acessá-lo. O jogo de papel e dados está lentamente se transformando em um serviço, e a série pode ser o carro-chefe dessa mudança.
Se funcionar, a Hasbro terá em mãos uma mina de ouro. Se fracassar, pode ser mais um golpe na credibilidade da marca, que já sofreu um baque com a crise da OGL e a falta de transparência nas suas decisões recentes.
O dilema da adaptação: o que é D&D sem seus jogadores?
Há uma ironia fundamental no esforço de transformar Dungeons & Dragons em uma narrativa fixa. O jogo sempre foi, acima de tudo, uma experiência interativa. Os livros de regras são apenas um ponto de partida; o verdadeiro coração do jogo está nas mesas, nos mestres improvisando reviravoltas inesperadas, nos jogadores tomando decisões caóticas que nenhum roteirista poderia prever.
Uma série de D&D, portanto, está fadada a perder esse elemento essencial. Sem a liberdade da improvisação e sem a participação ativa dos jogadores, restará apenas um universo genérico de fantasia medieval. Para que essa adaptação tenha sucesso, será necessário encontrar uma maneira de capturar o espírito de D&D sem simplesmente transformá-lo em mais uma cópia de Game of Thrones.
Mas a Netflix está disposta a correr esse risco?
A julgar por seus últimos movimentos, a empresa tem uma relação conturbada com suas próprias produções. The Witcher, que começou com uma primeira temporada promissora, rapidamente perdeu a confiança dos fãs com mudanças narrativas radicais. A adaptação de Cowboy Bebop foi uma tentativa fracassada de modernizar um clássico cult. E projetos como 1899 foram cancelados antes mesmo de terem tempo de construir uma base de público.
A esperança de que Forgotten Realms seja diferente reside no envolvimento de Shawn Levy, cuja experiência com Stranger Things sugere que ele sabe como equilibrar nostalgia e novidade. Mas nem mesmo isso é garantia de sucesso. Stranger Things funcionou porque misturava referências dos anos 80 com um enredo cativante e personagens carismáticos. O que Forgotten Realms oferecerá além de um cenário vasto e conhecido?
O jogo começou, mas os dados ainda não rolaram
Por enquanto, tudo permanece no reino das especulações. Não há elenco anunciado, nem detalhes sobre a trama, e a própria Netflix e a Hasbro ainda não confirmaram oficialmente a série. Mas mesmo sem informações concretas, a simples possibilidade de uma série live-action de D&D já movimenta discussões acaloradas.
Se o projeto avançar, ele terá que enfrentar um público que não se impressiona facilmente. Os fãs de D&D estão acostumados a experiências personalizadas e histórias únicas. Hollywood ainda precisa provar que pode oferecer algo à altura dessas expectativas.
E se o projeto fracassar? Bem, não seria a primeira vez. Nem será a última. Afinal, Dungeons & Dragons não é sobre certezas. É sobre risco, imaginação e, acima de tudo, a imprevisibilidade de um dado sendo jogado.
A jogada de dados ainda não foi feita. E, por enquanto, só nos resta esperar para ver qual será o resultado.