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Quando a cidade brasileira se torna cenário, o jogo deixa de ser ficção. Urban Shadows 2e é a crônica que sempre foi nossa.
Por: Paulo “Faren” Lima

Postado em 

26/03/2025

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22:44

Não foi um trovão que anunciou, tampouco um eclipse — foi uma live. Uma transmissão comum, de câmera fixa, com áudio ok, fundo limpo e olhares sinceros. Mas foi ali, na terceira edição do Tria Insider, que o anúncio aconteceu: Urban Shadows vem para o Brasil. Não como se fosse uma dádiva ou um presente divino, mas como uma necessidade civilizatória, quase um exorcismo cultural. Porque se alguém precisava de um jogo onde monstros vivem de dívidas e alianças quebradas, esse alguém é o brasileiro.

Urban Shadows, na live da Tria, foi anunciado com a precisão de quem não precisa gritar para ser ouvido. Sem fanfarras, sem pirotecnia — apenas o anúncio firme e limpo de quem sabe que está entregando um pavio aceso. A Tria não é boba, nunca foi. Ela sabia exatamente o que estava fazendo. A cidade já estava pronta; só faltava o ritual de invocação.

E o ritual começou.

Na tela, rostos entusiasmados falaram da proposta, da mecânica e da edição brasileira. Uma expectativa sufocada de que, talvez, finalmente tenhamos um jogo que não tenta nos redimir. Urban Shadows não vem para salvar ninguém. Ele vem para afundar todos, igualmente. E isso, no Brasil de agora, é mais libertador do que qualquer final feliz.

Não sei se você percebeu, mas estamos vivendo um país construído sobre favores. Cada relação social nossa é uma roleta de pequenas Dívidas — com D maiúsculo, como no manual do jogo. Ajudou o vizinho a subir a geladeira? Ele agora te deve uma. Fez uma ponte com o gerente do banco? Você tem capital político. Em cada churrasco, há um contador informal de favores. Cada favela é um arquivo vivo de favores cobrados e renegociados. Isso não é mecânica de jogo. Isso é terça-feira.

Então, quando Urban Shadows entra em cena e apresenta um sistema onde a alma da interação social são as dívidas, o impacto não é “wow, que mecânica original”. O impacto é “meu Deus, isso é minha vida!”. A diferença é que agora está nas mãos, impresso, com capa dura, para que possamos enfim entender as engrenagens da nossa própria miséria emocional.

E sim, sei que você está se perguntando: “Mas e os monstros?”. Ah, os monstros. Eles são o de menos.

Porque a verdadeira monstruosidade que Urban Shadows apresenta não está nos caninos expostos ou nas garras que cortam carne. Está no olhar do político que diz que vai resolver. Está na promessa quebrada da ONG que virou startup. Está no influenciador que posta sobre saúde mental enquanto esgota a dos seguidores. O verdadeiro horror urbano não é o sobrenatural, é o naturalizado.

A proposta da Tria, ao trazer Urban Shadows, não é apenas editorial. É quase um experimento social. Um estudo de caso. Um teste para saber se ainda somos capazes de jogar algo que nos mostre quem realmente somos — e não quem gostaríamos de ser. Porque a maioria dos RPGs no Brasil, sejamos honestos, ainda é sobre escapismo. Sobre matar dragões que, na prática, são apenas frustrações com o chefe, problemas com o aluguel ou o fantasma da dívida estudantil.

Mas Urban Shadows exige outro tipo de coragem. Exige que você encare um personagem que não precisa de XP para evoluir, mas de influência, chantagem e carisma podre. Que você entenda que cada avanço exige uma traição, uma renúncia ou uma entrega ao poder. E isso não é só política de mesa. Isso é política de bairro.

A cidade que Urban Shadows propõe não tem nome. Mas ela cheira a São Paulo. Ela soa como o metrô das 18h. Ela se comporta como Brasília num dia de votação. É um jogo sobre política, sim — mas política como ela é de verdade: pessoal, suja, ardilosa. Um jogo onde ninguém ganha limpamente, porque não há limpeza possível em um sistema que já nasceu sujo. É um House of Cards + DC + The Boys.

Quando a Tria diz, com um certo brilho nos olhos, que Urban Shadows vem aí, o que ela está dizendo é: “Se prepare para se sentir desconfortável.” Porque o jogo não vai te dar o conforto da fantasia heroica. Vai te dar, no máximo, a responsabilidade de sobreviver num mundo onde tudo é promessa não cumprida. E, cá entre nós, isso não soa exatamente como o Brasil de hoje?

O RPG brasileiro está acostumado a repetir fórmulas. A Tria, ao anunciar esse lançamento, rompe com esse ciclo. Não oferece um sistema onde você vai “upar” até virar semideus, mas onde cada passo te leva um pouco mais fundo no lodo. E, mesmo assim, você avança — não por glória, mas porque não há outra saída. E isso é genial. Isso é real. Isso é Brasil.

E talvez por isso mesmo, quando o anúncio foi feito, o que eu senti não foi empolgação. Foi um certo alívio. Como quem vê um amigo de infância voltar para a cidade — um amigo estranho, enigmático, que desapareceu há anos depois de uma série de crimes não resolvidos. Mas ainda assim, um amigo. Um monstro. Alguém que entende.

Então, agora que sabemos que Urban Shadows vai ganhar tradução e corpo físico por aqui, a pergunta que resta é: será que a gente vai conseguir jogar sem se quebrar um pouco por dentro? Ou será que, como a própria cidade que tenta descrever, cada mesa vai terminar com mais dúvidas do que respostas? Porque, se for isso, então a Tria acertou em cheio. Acertou ao nos dar um jogo que não precisa nos salvar — só precisa nos mostrar.

E às vezes, só isso já é demais.

Urban Shadows 2e: o RPG que o Brasil não sabia que precisava até agora — mas que vai devorar

Todo RPG é uma simulação de poder. Essa é a verdade que ninguém gosta de admitir. Por mais que se fale em “aventura”, “colaboração” e “interpretação de personagens”, o que o dado revela, no fundo, é quem manda. E Urban Shadows sempre entendeu isso melhor do que todos os outros jogos da sua geração. Mais do que um cenário, ele ofereceu uma alegoria política. Um espelho sujo que refletia o que acontece quando criaturas marginalizadas competem pelo controle simbólico e material de uma cidade decadente — escondendo seus crimes sob a névoa da normalidade. Em 2015, quando sua primeira edição surgiu, isso já era potente. Em 2025, com a segunda edição finalmente publicada, isso se tornou insuportavelmente necessário.

Porque a cidade mudou. E nós também.

A segunda edição de Urban Shadows não chegou como uma revolução. Chegou como ressaca. Daquelas que sobem devagar, arranham a garganta, passam pelo estômago e acabam latejando atrás dos olhos. Uma mistura agridoce de expectativa tardia, decepções anteriores e uma sensação inquieta de que, sim, desta vez, o jogo encontrou sua forma final. E é exatamente essa versão que a Tria Editora está trazendo para o Brasil.

Mas antes da esperança, no exterior houve peregrinação sobre a primeira edição. Um Kickstarter lançado ainda em 2020. Promessas de entrega para 2021. Atrasos sucessivos, um fandom dividido entre nostalgia e frustração, e um redemoinho editorial chamado Avatar Legends que consumiu os recursos humanos da Magpie Games por anos. Foi uma travessia tortuosa. Mas Urban Shadows sobreviveu. Porque, no fundo, ele nunca foi apenas um sistema. Foi um pacto. E pactos, como ensina o próprio jogo, não desaparecem — cobram.

E o que essa nova edição entrega?

Ela varre o sangue dos azulejos, limpa a poeira dos bastidores e reorganiza a mesa. O texto é mais direto, embora por vezes ainda sofra do vício do excesso. Os playbooks estão mais equilibrados. E, sobretudo, o jogo finalmente admite que os personagens não são um grupo — são sobreviventes da mesma cidade, cercados por interesses próprios, alianças frágeis e medos que fedem a mofo. A nova estrutura escancara essa verdade através do conceito de City Hubs — regiões da cidade onde a ação se concentra, onde os jogadores colidem, se esbarram e se traem. Urban Shadows 2e não quer que você explore a cidade. Quer que você sobreviva a ela.

Se antes cada personagem vagava em sua jornada pessoal, agora todos compartilham o mesmo mapa emocional. O cenário, que antes parecia uma São Paulo de papelão, ganha carne e calçada. Os Hubs são exatamente isso: cruzamentos perigosos, onde cada poste guarda uma dívida, cada boteco abriga uma traição, e cada NPC carrega uma promessa mal paga.

E tudo isso gira como engrenagem sutil pelas mãos do Mestre, agora amparado por uma nova mecânica chamada Faction Turn — uma fase onde as facções da cidade atuam por conta própria. O jogo não espera os personagens decidirem. A cidade se move. Respira. E às vezes, devora.

O que a Magpie fez foi simples e brutal: tirou a política da superfície e a empurrou para os bastidores — onde sempre esteve. Agora, os personagens não enfrentam o sistema. Eles são engolidos por ele. Suas ações já foram antecipadas por forças que sabem mais, veem mais, e precisam apenas de uma pequena fraqueza para apertar o nó.

Mas se tudo isso parece opressor, é porque deve ser. Porque Urban Shadows 2e não é sobre esperança. É sobre negociação com o inevitável. Um duelo de concessões onde todo ganho tem cheiro de corrupção, e toda vitória custa alguém que você ama — ou que te amava.

Os arquétipos, como era de se esperar, continuam lá. E continuam brilhando. Mas agora trazem mais peso político, mais ambiguidade. O Sworn, por exemplo, é o paladino de um poder maior. Não por fé. Por dívida. Por necessidade. O policial que acredita que o sistema pode ser salvo, mesmo quando esse sistema o ameaça com cada nova missão. O Imp, por outro lado, é um demônio fugido por erro burocrático, dono de um negócio que mal se sustenta, tentando esconder sua origem entre licenças fiscais e café ralo. Sim, ele existe. E soa muito mais como brasileiro do que como criatura infernal.

O Urban Shadows da segunda edição não oferece “novidades” no sentido superficial. Ele faz recalibrações cirúrgicas que tornam cada personagem não apenas sobrenatural, mas social. O vampiro continua sedutor — mas agora também é um capitalista afetivo. O lobo não é mais só fúria — é território, é posse, é fidelidade. O mago virou o funcionário público do além, preso entre regulamentos arcanos e uma burocracia que não se importa se o mundo está acabando.

É nesse ponto que Urban Shadows 2e atinge seu tom definitivo: não é um jogo sobre monstros. É sobre pessoas quebradas tentando não quebrar os outros. E FALHANDO.

E sim, ainda é um jogo Powered by the Apocalypse. Ainda se joga 2d6. Mas agora o dado não mede apenas sucesso — mede consequência. Cada ação vem atada a uma dívida. E cada dívida, uma escolha. Você pode puxar a corda. Mas ela já está no seu pescoço.

Jogadores que buscam liberdade absoluta vão se frustrar. Urban Shadows 2e não é sobre liberdade. É sobre impacto. Sobre saber que cada decisão deixa uma cicatriz. E que, no fim, a pergunta nunca é “como vencer?”, mas “quantas pessoas você perdeu pelo caminho?”

Claro que há críticas sobre a primeira versão da Magpie lá fora; algumas honestas: o livro foi lançado com ilustrações incompletas, playbooks prometidos e não incluídos. A arte abandonou o estilo estilizado e mergulhou em tons mais sombrios — o que dividiu opiniões. A estrutura modular, com os City Moves e Hubs, ainda gera certa confusão. Mas, no fundo, todas essas falhas apenas reforçam a verdade que o jogo carrega desde a primeira edição: Urban Shadows não é um produto polido. É um documento vivo de conflito.

O próprio Mark Diaz Truman, em entrevista durante o financiamento, deixou claro: não queriam um reboot. Queriam refinação. O jogo não foi redesenhado. Foi redestinado. Mais coeso. Mais mecânico. Mais real. E a premissa se mantém inalterada como tatuagem de fogo:

Você vai cair. A questão é como.

A mecânica de Corrupção, agora mais central, deixa isso evidente. Você pode ganhar poder. Mas vai pagar. Vai pagar com algo que não volta. Talvez a confiança dos outros. Talvez sua dignidade. Talvez a única parte de você que ainda acreditava em alguma coisa. Urban Shadows é o único jogo em que você desce de nível para subir na vida.

E o Brasil? Está Pronto para isso?

Essa pergunta vale mais do que qualquer resenha.

Estamos acostumados com sistemas onde se premia a bondade, onde seguir a lei garante XP, onde o heroi é exaltado por resistir. Em Urban Shadows, cada ato heroico te aproxima do abismo. Cada vitória tem gosto de lixo queimado. E o monstro final talvez seja você mesmo, olhando para trás e vendo o que fez para sobreviver.

E talvez seja por isso que o lançamento brasileiro tenha tanto peso. Porque ele não chega como um hit de mercado. Chega como um espelho rachado, jogado no meio da sala, refletindo cada rachadura do nosso próprio edifício social.

Quando a Cidade Fala Português: Urban Shadows 2e no Brasil

A espera terminou. E quando a Tria Editora anunciou, agora, na live do dia 25 de março de 2025, que Urban Shadows 2e seria lançado oficialmente em português, não houve fogos. Houve um silêncio atento. Como aquele instante antes de uma tempestade. Como o momento em que a cidade prende a respiração, sabendo que algo está prestes a mudar — ou desabar.

Porque Urban Shadows, no Brasil, não é apenas um jogo. É uma devolução. Uma reparação. Uma carta que ficou parada nos Correios narrativos da história por sete anos — e que, agora, finalmente chega com selo novo, tradutor responsável, dados temáticos e o mais importante: contexto.

Mark Diaz Truman, designer-chefe do jogo e CEO da Magpie Games, expressou com clareza esse retorno ao projeto:

“Ficamos felizes em retornar ao Urban Shadows com todas as ferramentas e experiências que adquirimos como designers e editores nos últimos dez anos. Há tantas coisas neste livro — novos playbooks como o Sworn e o Imp, o novo turno de facção, os Círculos atualizados — que simplesmente não sabíamos como fazer parte do jogo em 2015. Tudo, desde a mecânica básica até as ferramentas do mestre de jogo, o layout e a arte, foi revisado e reconstruído, tudo na esperança de trazer a melhor versão deste jogo para as mesas do mundo todo.”

E foi exatamente isso que a Tria decidiu trazer para o Brasil: a melhor versão possível do jogo. A edição nacional virá com tudo — e mais. Além do livro básico com 320 páginas e arte digna de vitrine, a versão brasileira terá, pelo menos, escudo do mestre, caderneta personalizada e conjunto de dados temáticos. É um material que não apenas se impõe na estante, mas também convida à mesa.

E essa mesa, no Brasil, está posta há tempos.

Cidades Que já são Hubs

A mecânica dos City Hubs, uma das grandes inovações da segunda edição, encontra no Brasil terreno fértil demais. E isso não é força de expressão. Hubs são pedaços de cidade concentrados em conflito, cultura, disputas de poder, histórias inacabadas. São microcosmos dentro do macro caos urbano. E aqui, é difícil escolher qual cidade brasileira não seria um Hub por excelência.

Salvador, por exemplo, com suas ruas sagradas, suas disputas entre igrejas e terreiros, seus pactos entre tradição, turismo e resistência — é praticamente um Hub pronto. O Círculo Selvagem ali se confunde com o cotidiano. A disputa entre as facções poderia se dar entre uma federação de yalorixás, uma empresa de turismo esotérico e uma bancada evangélica local.

Brasília, por outro lado, é o próprio Faction Turn encarnado. A capital, desenhada para não ter esquinas — para evitar encontros e, portanto, colisões — é ironicamente o lugar onde os bastidores movem tudo. Jogue em Brasília e o seu personagem nunca saberá quem o está manipulando. Só sentirá o efeito. Como na vida real.

São Paulo oferece vários Hubs simultâneos. A Cracolândia é um deles: território em disputa entre milícia, governo, crime organizado e movimentos sociais. Um lobisomem tentando proteger usuários vulneráveis contra um vampiro investidor que quer “gentrificar” a área soa como exagero? Não. Parece terça-feira.

A Baixada Fluminense poderia ser um Hub inteiro. Uma sequência de comunidades onde a ausência do Estado é preenchida por pactos não-oficiais. O líder comunitário que é também caçador. A empresária que financia segurança privada com dinheiro de favores ocultos. A médica que sabe mais sobre espíritos do que sobre anatomia. E todos eles — todos — devendo algo a alguém.

E em Recife, a disputa entre o folclore e o capital é explícita. Uma entidade ribeirinha presa num contrato de concessão de drenagem urbana. Um exorcismo cancelado por interferência da Sudene. Um mago que virou vereador e agora tenta aprovar uma PEC para regulamentar a necromancia em áreas tombadas. Urban Shadows 2e não precisa inventar esses enredos. Precisa apenas observar o noticiário.

O Brasil como Playground Sobrenatural

Mas não são só locais. São eventos. A estrutura política de Urban Shadows 2e se encaixa como luva nos momentos mais densos da nossa história recente.

A CPI da Covid poderia ser jogada como uma crônica completa. Cada senador representando um Círculo. Um vampiro tentando proteger seus interesses econômicos. Um Sworn que acredita genuinamente na Justiça, tentando navegar entre a fé e os fatos. E, no centro, uma cidade que sangra — literalmente.

Ou a tomada do Complexo do Alemão, com suas alianças improváveis, seus líderes invisíveis, seus feitiços escondidos em terreiros invadidos. A política, ali, não era só armada. Era simbólica. E simbologia, no RPG, é narrativa.

Mesmo o massacre de Paraisópolis — com o Estado matando jovens num beco estreito, como se quisesse apagar uma geração inteira de uma vez — caberia em um faction move. Um erro premeditado. Uma retaliação simbólica. Um pacto de silêncio posterior. E, nas sombras, entidades gritando.

Tudo isso mostra que Urban Shadows 2e não é um jogo que “dá para adaptar ao Brasil”. Ele é um jogo que parece ter nascido aqui. Só não sabia ainda.

Quando o Monstro tem Cargo Público

A mecânica de Corrupção da nova edição também casa perfeitamente com a nossa realidade. Porque aqui, o monstro raramente vive no subterrâneo. Ele usa terno, anda de Hilux, discursa em assembleias. A Corrupção não é invisível — é televisionada. Um Tropa de Elite 2. 

E ainda assim, não é uma vilania simples. É cheia de camadas. O vereador que manipula orçamento, mas também garante escola e água para a periferia. O pastor que explora fiéis, mas também paga o aluguel de uma família em segredo. A policial que tortura bandidos, mas protege os moradores de abusos maiores. São personagens prontos para Urban Shadows. Jogadores que entram pela porta da frente — e saem pela janela do fundo, com sangue na camisa e remorso na alma.

No sistema, marcar Corrupção é ganhar poder. A um custo. Você pode resistir. Mas vai ficar para trás. Ou pode ceder. E pagar o preço. Como tantos dos nossos herois que tentaram jogar o jogo, mas o jogo os engoliu.

O MC Como Retratista do Caos

O papel do MC também encontra eco profundo no Brasil. Afinal, nossos mestres sempre improvisaram. Sempre foram agentes do caos. Sempre souberam que a história não precisa ter final feliz. Precisa ter consequências.

E é isso que o Quickstart (link abaixo) reforça: o MC de Urban Shadows 2e não conta histórias. Cria armadilhas emocionais. Oferece poder com uma mão e cobra com a outra. Mostra que, às vezes, o vilão está certo — e o heroi é só um filho da puta bem-intencionado.

Foi o que encantou gente como Taylor Robinson, do canal Taylor’s Tavern Tales, que declarou depois de experimentar o novo material na GAMA Expo:

Tive a chance de conferir Urban Shadows 2e no início da GAMA Expo deste ano, e fiquei muito animado para ver todas as atualizações legais. Sem mencionar que a arte no livro é fenomenal e captura perfeitamente as vibrações melancólicas e tumultuadas. Meus tipos favoritos de jogos para jogar são sempre baseados em intrigas políticas, e quando você adiciona vampiros, magos, mortais e mais na mesma cidade instável, estou aqui para isso!

É esse tipo de encantamento sujo, essa beleza decadente, que o livro novo entrega com força.

O pacto cumprido

Por tudo isso, a chegada de Urban Shadows 2e ao Brasil, pela Tria, não é só uma reparação editorial. É um acerto de contas com nossa própria forma de jogar RPG. Uma forma marcada por sincretismo, improviso, dívida emocional e potência narrativa.

A edição anterior, na gringa, prometida e não entregue, virou trauma. Demorou, mas repararam. A nova edição, agora oficial, vira ferramenta. Para contar as histórias que a gente já conta. Mas agora com método. Com mecânica. Com dados. Com regras. Com maldição.

O Brasil é, afinal, um país de monstros. Alguns ocultos. Outros eleitos. Alguns com asas. Outros com mandatos. E todos, sem exceção, nos ensinando — desde cedo — que todo favor será cobrado.

Urban Shadows 2e sabe disso.

E agora, fala isso em português.

Como quem conhece bem o valor da dívida, a Magpie Games decidiu entregar parte do tesouro sem cobrar. Em seu site oficial, liberou gratuitamente os materiais fundamentais de Urban Shadows 2e — não como isca, mas como gesto. Os Playbooks, o conjunto de materiais de apoio, e o mais importante: os City Hubs, estão todos disponíveis para download. Ou seja, você pode estudar a alma do jogo antes mesmo de comprá-lo. Pode se perder nos becos da cidade de papel, entender suas facções, tocar as engrenagens antes de rodar os dados. É como receber um mapa da cidade antes de entrar nela. Mas, como todo mapa, o que ele revela não é a rota mais segura — é onde estão os riscos.

Tria Editora e os Pactos que Cumpre: Como uma Pequena Editora está Moldando o futuro do RPG no Brasil

Não é exagero dizer que o cenário brasileiro de RPG vive uma espécie de segunda onda. A primeira foi feita de xerox, tradução clandestina e encontros em livrarias. A segunda? Essa está sendo desenhada por editoras como a Tria. Só que, ao contrário do que muitos pensam, essa nova era não será feita de nostalgia ou revivalismos. Será feita de risco. De coragem editorial. E de editoras que topam trazer ao Brasil jogos que não são “pra todo mundo”. A Tria não está aqui para agradar — está aqui para desafiar.

Quando se olha para o catálogo atual da Tria, o que se vê é quase uma curadoria. Um recorte muito específico da produção internacional. Um recorte que não persegue fama, mas densidade. Que escolhe jogos não pela viralidade, mas pela capacidade de incomodar, emocionar, tensionar. Não à toa, Urban Shadows 2e está entre os títulos escolhidos. Mas ele não está só.

Nos últimos meses, a Tria tem mostrado que é possível fazer financiamentos ousados, traduções cuidadosas e entregas respeitosas ao público, mesmo com um mercado saturado de PDFs esquecíveis e manuais genéricos. Em vez de se render ao algoritmo, a editora parece ter firmado um pacto com outro tipo de entidade: o jogador que pensa. Que sente. Que se recusa a repetir a mesma aventura reciclada.

Veja o caso de Lancer, por exemplo. Um jogo de ficção científica tática, com robôs gigantes e combate pesado — mas que, no fundo, é sobre política interestelar, desigualdade estrutural e identidade. Um RPG que exige mais de quem lê e de quem joga. Que não tem medo de ser técnico, denso, cheio de números — e mesmo assim, explodiu em financiamento no Brasil. Mais de R$ 236 mil arrecadados. Quase 600% da meta inicial. Isso não é um sucesso. Isso é um sintoma. Um sinal de que o público está mais maduro do que as editoras grandes querem admitir.

E a Tria Percebeu

Percebeu ao trazer Ronin, que escapa do clichê dos guerreiros solitários e mergulha numa proposta onde honra e sobrevivência duelam a cada escolha. Um RPG de inspiração oriental, sim, mas também um estudo sobre o que significa seguir um caminho pessoal num mundo que exige obediência. Um jogo que, na prática, trata da liberdade como maldição.

Percebeu ao apostar em Hopefinder, um projeto que não traz apenas um jogo, mas uma provocação: como jogar sobre esperança quando o mundo real parece colapsar a cada semana? Hopefinder é mais do que uma adaptação de Pathfinder. É um manifesto. Um RPG que quer reconstruir o apocalipse com as próprias mãos — e com dados.

E aqui vale um elogio que muitos têm medo de fazer: a Tria não se limita à tradução. Ela adapta com alma. E quem leu meu artigo sobre Hopfinder sabe que eu tinha ressalvas quanto a ela — mas o tempo me emprestou maturidade e conhecimento para entendê-la. Não entrega livros pasteurizados. Cada manual carrega uma preocupação editorial com o contexto brasileiro. Um olhar que entende que não basta verter o texto para o português — é preciso traduzi-lo para o nosso caos. Para nossa estética. Para nossa vida urbana real, que não tem becos de Gotham nem cafés de Seattle.

Urban Shadows 2e, nesse sentido, parece o auge dessa trajetória. É como se cada projeto anterior tivesse sido um ensaio. Uma preparação para o momento em que a Tria olharia para o próprio espelho e dissesse: “Agora é hora de publicar algo que doa.” E não apenas por seu conteúdo sombrio. Mas pela forma como exige do jogador uma entrega emocional real. Pela forma como exige que o Mestre abandone os trilhos, confie na improvisação, e aceite que nenhuma sessão vai terminar do jeito que começou.

E é por isso que o trabalho da Tria merece atenção. Porque ela está construindo uma editora que não é apenas uma marca, mas uma assinatura de estilo. Um selo que, ao aparecer na capa de um jogo, já comunica algo ao jogador. Algo como: “Aqui há profundidade. Aqui há risco. Aqui há uma proposta estética e política.” Algo que, sejamos honestos, nem mesmo as maiores editoras do Brasil conseguiram fazer.

Enquanto outras se debatem em traduções apressadas, prazos furados e caixas que chegam tortas (quando chegam), a Tria avança devagar, mas firme. Escuta sua base, comunica com transparência, testa formatos e, acima de tudo, respeita o jogador como um ser pensante. Um ser que não quer apenas dados e magias — quer experiências. Quer dilemas. Quer cair de cabeça em mundos que o façam repensar o seu.

E não é só isso. A Tria também compreende o papel afetivo do RPG. Ela sabe que um jogo de mesa não é apenas um produto: é um encontro. Um espaço de construção subjetiva. Um lugar onde traumas e alegrias dançam juntos em círculos apertados, iluminados por velas ou telas frias. E por isso mesmo, cada lançamento seu carrega uma responsabilidade ética. Uma espécie de pacto silencioso entre editora e jogador. Um pacto que, até agora, ela tem cumprido com rigor e beleza.

Isso não é pouca coisa num país onde editoras somem, atrasam, ignoram perguntas e vendem promessas vazias com capa dura. Isso é raro. E, por isso mesmo, valioso.

O Que Vem a Seguir?

Não sabemos. Mas sabemos disso: enquanto outras editoras apostam no seguro, a Tria aposta no significativo. E se isso significar vender menos, mas tocar mais, que seja. Porque o que ela está construindo é mais do que um catálogo — é uma biblioteca de jogos que desafiam. Que provocam. Que não servem para passar tempo, mas para moldar o tempo.

E talvez, no fim, seja isso que todo jogador de verdade quer: um RPG que não apenas entretém, mas transforma.

Vestígios Digitais e Fontes

E, claro, nenhum pacto é completo sem as marcas gravadas nas páginas do tempo — ou, no caso, nos navegadores dos nossos dispositivos. Porque não se trata apenas de acreditar no que foi dito, mas de percorrer os caminhos, acessar os portais, explorar os arquivos que sustentam essa narrativa feita de escolha editorial, tensão urbana e apostas narrativas de longo prazo.

Abaixo, reuni todos os vestígios digitais, fontes e links que sustentam cada palavra deste texto. Porque não se combate a ignorância apenas com opinião — é preciso munição. Fontes. Provas. E, como Urban Shadows bem nos ensinou: dívidas documentadas.

Urban Shadows e sua segunda edição

Tria Editora e seus lançamentos

Outros financiamentos recentes da Tria

Loja e títulos publicados

Sobre o Autor

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Paulo "Faren" Lima

Considera RPG terapia, trabalha na Stone Co, viciado em processos, nascido e criado no Tocantins, narra em The Witcher.

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