E talvez eu seja um dos piores tradutores do mundo porque não acredito em tradução no sentido tradicional. Meu negócio é contrabando de sentidos, um vaivém clandestino onde cada frase carrega suspeitas, desejos e contradições.
Por: Paulo “Faren” Lima

Postado em 

27/02/2025

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23:54

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Sou um traficante de ideias. Sabe aquela sensação de estar invadindo um território proibido, atravessando fronteiras sem visto no passaporte? É mais ou menos isso que faço com palavras, sem pedir licença a quem julga a tradução uma simples troca de termos. Meu negócio é contrabando de sentidos, um vaivém clandestino onde cada frase carrega suspeitas, desejos e contradições.

E talvez eu seja um dos piores tradutores do mundo porque não acredito em tradução no sentido tradicional. Quem me conhece, inclusive o pessoal do curso de tradução aqui no Artificio RPG, já ouviu meu discurso de rebelde cansado: cada idioma tem seu próprio mapa de ruínas e tesouros, e nenhuma palavra atravessa a fronteira ilesa. É preciso arrancar a capa, refazer a maquiagem e, às vezes, até trocar as vísceras do texto, se quisermos que ele respire na língua de chegada.

Mas não pense que sou só um niilista de plantão. Talvez haja um quê de Luiz Felipe Pondé na minha descrença, essa mania de cutucar feridas e dizer que a humanidade é frágil. Sejamos honestos: a tradução expõe nossa miséria cultural. A gente se ilude achando que basta ter um dicionário, mas não é bem assim. Cada termo carrega uma carga histórica, um cheiro, um trauma. E aí, se você se prende à forma, engessa o sentido; se relaxa demais, vira uma bandalheira sem raiz.

E é aqui que entra o papo sobre RPG. Já discutimos isso em rodas de conversa, entre cafés derramados e dados jogado, durante o curso no Artificio RPG. Um jogador reclamou: “Cara, essa expressão em inglês tem outro peso, outra vibe.” E não adianta só abrir o Chat GPT. A tradução de RPG é uma fauna inteira de orcs, elfos, planetas distantes e círculos de magia que transbordam significado. Um descuido, e a mecânica do jogo explode na sua cara.

Uma língua não é apenas um código, mas um organismo vivo que sangra, se deforma e se regenera. Aí eu lembro do Arnaldo Jabor, que adorava chacoalhar o leitor e dizer: “Meu filho, acorda pra vida, pois o mundo não tá nem aí pro seu chororô.” E na tradução, é bem isso: as palavras não vão ter pena de você. Se você não for corajoso, acaba se rendendo ao literal e criando um Frankenstein no lugar de um texto coerente.

Talvez eu seja um ator, interpretando a voz de um autor em outra língua, captando não apenas palavras, mas intenções. O tradutor encena, performa, busca o timbre emocional, os silêncios, os ritmos ocultos. Como um dublador que não apenas repete falas, mas quer reproduzir a alma daquilo que é dito. Só que aqui, no meio desse palco, a plateia é o leitor que desconhece o idioma de origem. Ou melhor: o leitor que deposita uma fé meio cega, meio ingênua, de que o tradutor sabe o que faz.

Cada tradução é um duelo. Entre o literal e o interpretativo, entre o que se mantém e o que se perde. O personagem estrangeiro não pode soar como alguém de um bairro carioca, mas também não pode virar uma múmia sem graça. Mesmo assim, a gente tenta, se joga no abismo e vê no que dá.

E há o dilema da traição. Como um traidor que precisa escolher que parte do crime cometer, cada decisão exige que eu pese perdas e ganhos. Um jogo de equilíbrio onde a linha entre a adaptação e a deturpação se dissolve como tinta em água. A cada escolha, um desvio. A cada concessão, um rastro de algo que ficou para trás.

Pra mim, a tradução é um vício e uma terapia. Um vício porque não consigo parar. Adoro o cheiro de vocabulário recém-encontrado, a adrenalina de achar o adjetivo perfeito, como quem encontra uma nota de cem no bolso do paletó. E é terapia porque me coloca num estado quase zen. Quando entro em modo tradutor, esqueço do resto do mundo e mergulho num monólogo interno que, paradoxalmente, me revela novas facetas.

No fim, sou um falsário de linguagens, mediador entre mundos, moldando pontes frágeis entre realidades distintas. Em vez de apenas traduzir, recrio a experiência de ler um texto como se fosse pela primeira vez, em outro idioma, para outro leitor, sem sacrificar o impacto original.

Mas é claro que existe um preço. A cada texto, meu próprio idioma se fragmenta, absorvendo ecos estrangeiros, deformando-se em um mosaico de expressões e construções que não batem cem por cento em lugar nenhum. Me pego com gírias de lá e sotaques de cá. Me sinto sem-pátria no quesito linguístico.

Ainda assim, sigo em frente. Porque há algo de sagrado nisso. Quando acerto um tom, capturo um sentido, é como se eu tivesse resgatado uma pérola do fundo do mar sem quebrar sua concha. E me sinto aquele contrabandista eficaz, que despista a alfândega da literalidade e entrega a mercadoria intacta. Porque no fim das contas, toda boa tradução é um pequeno milagre de fingimento.

Ser tradutor é ser um artesão de sombras. O leitor não deve perceber que há alguém no bastidor mexendo as cordinhas. A mágica surge quando nada parece ter sido tocado, mas tudo foi reconstruído com as mãos de um outro. E se, no final da jornada, o leitor achar que conheceu o autor sem nem se dar conta da minha intervenção, então terei cumprido meu destino. A arte da tradução é desaparecer enquanto se constrói uma nova voz.

E como todo vício, a tradução me consome. Cada texto é uma nova paranoia, um enigma que não posso abandonar pela metade. Posso passar madrugadas reescrevendo, ajustando, refinando, sem conseguir dormir enquanto aquela frase estiver fora do lugar. É obsessão e, ao mesmo tempo, catarse. Repetir leitura e recriação me faz bem, me coloca em paz comigo mesmo. No fim, é traduzindo que esqueço até das contas a pagar.

Traduzir é um eterno processo de descoberta. Não apenas do texto original, mas da minha própria língua, que se revela elástica, caprichosa. A cada frase, vejo-a resistir ou ceder. Ela brinca comigo como se dissesse: “Vamos ver se você aguenta o tranco.” Então me viro, contorço a sintaxe, forjo neologismos, e cada tradução se torna um jogo perigoso de identidade.

Dar ao leitor uma nova chance de sentir o que um autor distante quis dizer também requer que eu jamais me iluda quanto à neutralidade. Minha voz, meus instintos, minhas escolhas, tudo isso molda o texto. Luiz Felipe Pondé provavelmente alfinetaria: “A vida é uma sucessão de escolhas cínicas e honestas, ao mesmo tempo.” É assim que me sinto ao traduzir. Desapareço, mas deixo minhas digitais.

Então retorno à pergunta primordial: “Como posso transportar isso?” É um impulso que não cessa, o chamado para fazer histórias atravessarem oceanos sem afundar. No fim, sou viciado em significados, colecionador de matizes, caçador de nuances. Um explorador de mundos que, de outro modo, permaneceriam intocados.

E se a tradução é um jogo, é um jogo de equilibrista. Cada detalhe pode mudar todo o tom da obra. Um termo torto aqui, e pronto: descarrilamos a narrativa. Quem ganha e quem perde nessa história? Ninguém sabe. Mas continuo, porque tenho um compromisso com esse vício — e no Artificio RPG, que me faz repensar minhas escolhas.

Agora, falar de traduzir RPG, esses gigantescos RPGs, é quase enfrentar uma hidra de nove cabeças. A mecânica, a ambientação, os termos técnicos, cada um é uma cabeça que morde diferente. Se vacilar, o bicho te engole. E os alunos do Artificio RPG sabem: um errinho numa habilidade, uma falha na descrição de uma magia, e se instaura o caos na mesa de jogo. A sintonia do grupo se perde, o narrador entra em parafuso.

Quando traduzo RPG, me sinto um diretor de cinema lidando com um elenco caótico. A ambientação medieval, por exemplo, exige que eu carregue no sotaque, mas sem cair na caricatura. Já na ficção científica, tenho que inventar termos tecnológicos sem soar brega.

A voz do autor em RPG não é só literária: é também mecânica. O sistema de regras, a coerência interna. É quase uma religião de dados, a fé nos acertos críticos. Se a tradução desliza, o mundo do jogo se torna disfuncional. Então, além de contrabandista, me vejo como guardião da integridade do jogo. Preciso manter aquela centelha original, pra que os mestres e jogadores tenham as mesmas epifanias que teriam no idioma de origem.

As histórias, as aventuras, o potencial criativo, tudo isso se abre para quem não fala a língua de origem. O que era um refúgio de uns poucos se torna um banquete onde mais gente pode se sentar. E isso é a importância de espalhar possibilidades, mesmo que as chamem de utopias ou sonhos ingênuos.

Mas tem vez que, no meio dessa jornada, me pergunto: “Quem, afinal, é que ganha com tanto trabalho, ainda mais gratuito, voluntário?” E lembro do riso de um grupo ao descrever um dragão pela primeira vez, ou a surpresa quando descobrem a reviravolta planejada pelo roteirista original. Aí entendo: tudo vale a pena quando a gente vê a imaginação pulsando na mesa. A gente costura pontes, e as pessoas atravessam, felizes, pra um outro lado.

No fim, traduzir RPG difere pouco de traduzir prosa ou poesia. É apenas mais colaborativo, mais vivo, quase um teatro improvisado. Cada sessão joga luz sobre frases que escrevi. Se a tradução falhar, é como se a iluminação do palco estivesse desligada. Mas, quando acerta, a cena brilha em technicolor, e o mundo do jogo ganha vida.

Por isso, cada manual, cada bestiário, cada magia, acende o mesmo fogo que me levou a esta paixão estranha. Traduzir RPG é se viciar em universos. É ficar obcecado por detalhes. É querer que todo mundo tenha acesso ao mesmo fascínio. Sou cúmplice e zelador, um intermediário que abre as portas para que outros vivam aventuras inimagináveis. Se não for pra ser assim, então melhor nem traduzir.

E, claro, a gente comenta tudo isso em bate-papos despretensiosos, como já fiz com os alunos do Artificio RPG — afinal, são eles que me provocam a pensar sobre a razão de estarmos aqui, debatendo cada vírgula de um texto alheio. E a conclusão é sempre a mesma: traduzir é um ato de paixão e, por que não, de loucura. Uma loucura que polemistas talvez aplaudissem, ou criticariam com ironia, mas que, no fundo, comprova que ainda não desistimos de nos comunicar, de entender, de tocar o outro com as palavras.

Sobre o Autor

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Paulo "Faren" Lima

Considera RPG terapia, trabalha na Stone Co, viciado em processos, nascido e criado no Tocantins, narra em The Witcher.

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