O fim da campanha não veio por TPK. Perfeito. Não há gênese. Não há big bang. Não há criação ex nihilo. Em As Brumas de Nivellon, o mundo não nasce: ele é costurado. É alinhavado com dedos trêmulos, memória falha e saudade demais. O que se apresenta como cenário é, antes de tudo, uma cicatriz. E o que chamamos de Planisféria talvez devesse se chamar epitáfio — ou altar.
Confira o Resumo em Áudio Abaixo:
Zé Trevisan, do canal PodeMestre não fundou um mundo. Ele o bordou, o poliu. Ponto por ponto, como quem tenta prender com linha aquilo que não quer mais ficar: o RPG, os amigos, o passado. Ele mesmo admite, com aquela modéstia sincera de quem sabe o valor do que fez: “Nivellon não é um criador. Ele é um costureiro de uma coxa de retalhos”. E coxa aqui não é erro. É escolha. É afetivo. É coloquial como infância. Como sala de estar com dados no chão e ficha rabiscada em folha sulfite.
A Planisféria, esse mundo onde se desenrolam os dramas de Brumas, é explicitamente feita de pedaços. Mas não de pedaços quaisquer. São fragmentos de mundos que “perderam a luta contra Shaydaan”. E Shaydaan, como veremos mais à frente, é o nome dado àquilo que realmente mata o RPG: o Não-Jogo. Não é a morte violenta. É a ausência. O esquecimento. A vida adulta. O silêncio de um grupo de WhatsApp.
O autor é claro — até demais: “Os mundos que perderam a luta contra Shaydaan são mesas de RPG que tiveram sua última sessão para sempre”. Essa frase, dita quase como se não soubesse o peso que carrega, é talvez o centro de toda a obra. Porque toda a cosmologia criada a partir dela não é uma cosmologia de expansão. É uma cosmologia de luto. Um multiverso em que cada continente é, na verdade, um túmulo. Mas um túmulo com chance de reencarnação.
A geografia aqui em Brumas de Nivellon não é geografia. É tentativa. É gesto. É salvação. A Planisféria é literalmente um disco central cercado por outros discos cósmicos — elementos, forças, vazios orbitais. Mas ela também é uma metáfora de camadas: memória sobre memória, trauma sobre trauma, partida sobre partida. A sobreposição dos discos é a sobreposição das histórias que nunca terminaram.
Ao explicar a estrutura, Zé diz: “O Castelo de Nivellon desliza sobre trilhos que são parte da própria estrutura do disco central da Planisféria”. Isso não é apenas descrição espacial. É confissão. É como se dissesse: minha fantasia precisa de trilhos, porque sem trilhos ela descarrila. Porque sem esses trilhos simbólicos, o RPG acaba. Os amigos não voltam. E não há bruma que esconda o vazio.
Mas se tudo é perda, por que o livro não é um lamento só? Por que há mapas, por que há personagens, por que há tanta vida nas entrelinhas?
Porque o autor não escreve como quem se despede. Ele escreve como quem tenta voltar. Como quem sabe que não há retorno literal, mas que há retorno simbólico. “Minha realidade morreu e eu forjei uma nova realidade, eu forjei o novo mundo”, diz ele. É uma frase que poderia estar num mito — mas está na entrevista. Ele a diz como quem desabafa. Como quem sobrevive.
Essa nova realidade — a Planisféria — é feita com os melhores pedaços de mundos perdidos. “Pegou tudo de bom que tinha nas mesas que ele participou, que ele jogou”, escreve sobre Nivellon. Mas sabemos que é também sobre ele. É sobre o Zé, o mestre, o PodeMestre, que viu sua mesa de uma década se dissolver em boletos e calendários. E que, em vez de aceitar a morte, decidiu costurar.
Há algo profundamente humano e, ao mesmo tempo, profundamente trágico nessa figura de Nivellon. Ele não é um deus. É um órfão. Um órfão de universo. Um órfão de realidade. “Ele é a representação de vários”, explica Zé. “É a vivência entre eu e o meu personagem, que são vários personagens”.
Isso não é só uma metáfora de criação coletiva. É uma metáfora de perda coletiva. Cada jogador que já viu uma campanha se desfazer por motivo externo — uma mudança, um filho, um burnout — sabe que há algo de morte simbólica nisso. Nivellon é a tentativa de reverter esse processo. De reunir os fragmentos. De fazer da ausência uma nova presença.
E mais: ele não quer morrer. Isso é dito. É repetido. É proclamado. “Ele sabe que só personagens de jogador podem ser heróis”, diz o autor. “O plano de Nivellon é reunir personagens de jogador que mantenham as mesas funcionando”. Em outras palavras: o que salva o mundo é jogar. O que salva o multiverso é sentar à mesa, jogar dados e continuar a narrativa.
Mas não se trata de nostalgia rasa. Não é uma aposta aos velhos tempos. É, sim, um reconhecimento do passado, mas em função do futuro. O livro encoraja o leitor a usar “suas próprias histórias, sistemas e personagens de outros cenários” — porque o próprio mundo foi feito assim. Porque Nivellon só existe enquanto houver quem jogue nele. Porque ele é, ao mesmo tempo, criatura e cenário. Jogador e jogo.
Na Biblioteca de Nivellon, por exemplo, há uma “representação holográfica do percurso da Planisféria pelo Ether”. É quase uma Google Maps do luto narrativo. Um mapa estelar de todas as mesas que morreram e que, agora, vivem em fragmento. É como se o livro dissesse: “você não precisa esquecer sua campanha abandonada. Você pode trazê-la para cá. Pode encaixá-la. Pode continuar”.
Essa é, talvez, a proposta mais radical da obra. Não a construção de um mundo original — mas a recostura de mundos mortos. Não a invenção de uma mitologia nova — mas o resgate de mitos interrompidos. E, por isso mesmo, Brumas de Nivellon é mais do que um cenário: é um ritual. Um espaço simbólico de permanência.
O próprio autor define assim: “O sucesso vai ser ver que daqui 10, 15, 20 anos […] ainda existe, ainda tem uma base, ainda tem pessoas que entenderam a proposta e escolheram combater o Não-Jogo”.
Do ponto de vista de design, é possível fazer críticas. A ausência de um glossário claro dificulta a navegação pelo mundo, especialmente para mestres iniciantes. A organização de algumas informações poderia ser mais fluida. Mas talvez isso também faça parte do projeto. Talvez a fragmentação editorial seja coerente com a fragmentação simbólica do mundo. Talvez buscar algo no livro seja como buscar um amigo de infância: confuso, demorado, mas sempre emocionante.
Ao final, o que temos não é um cenário, mas uma oferenda. Não é um livro, mas uma tentativa de fazer o RPG continuar existindo. “A cola resistente”, escreve o autor, “são as pessoas para jogar usando o cenário As Brumas de Nivellon, pessoas que deem suas opiniões, que façam parte do movimento contra o Não-Jogo, e que convidem mais pessoas para fazer parte disso”.
É isso. Cada jogador que abre Brumas de Nivellon, que lê as descrições, que imagina uma sessão ali, está costurando junto. Está ajudando Nivellon a não desaparecer. Está dizendo, silenciosamente: eu também perdi uma mesa. Mas ainda estou aqui.
E esse “ainda estou aqui” talvez seja a coisa mais bonita que um RPG pode dizer.
Shaydaan e o Não-Jogo — Quando o Vilão É o Tempo que Nos Rouba a Mesa
O maior inimigo de um RPG nunca foi um tirano carismático. Nunca foi um dragão ancestral, um artefato proibido, um demônio extradimensional. O maior vilão do RPG é a desistência. Aquele momento em que ninguém mais aparece. É o final não terminado de Caverna do Dragão. É quando a ficha permanece na gaveta. Em que a vontade existe, mas o tempo não. Em As Brumas de Nivellon, essa verdade brutal ganha forma. E nome. E mitologia. Shaydaan. O Devorador da Esperança.
Zé Trevisan faz aqui um gesto simbólico inédito: ele transforma a ausência em antagonista. E mais — ele lhe dá motivação, agência e, sobretudo, uma função dramática dentro da própria diegese. Shaydaan não é uma entidade com HP. É uma força com implicações narrativas e metajogo. Ele só vence quando ninguém mais joga. E o livro inteiro é uma tentativa desesperada — e belíssima — de impedi-lo.
“A motivação real para escrever o livro?”, perguntei ao autor. E ele responde: “Perspectiva. […] Mostramos que o verdadeiro vilão do RPG é não jogar”. Não há ambiguidade aqui. Shaydaan é o Não-Jogo. E o Não-Jogo é tudo aquilo que se interpõe entre um grupo de amigos e sua próxima sessão. “Trânsito, boletos, filhos chorando, chefes gritando…”, enumera Trevisan. Mas também: festas de família, novos relacionamentos, promoções no trabalho. Coisas boas que, sem querer, interrompem o ritual.
Esse é o horror de Shaydaan: ele não é maligno no sentido clássico. Ele não quer poder, nem controle. Ele quer silêncio. Quer a paralisia. Quer o esquecimento de si. É o vilão que age sorrateiramente e vence por inércia. “A vitória dele acontece quando ninguém mais jogar”, explica o autor, como quem admite um luto, mas também uma batalha. “Aí ele zera a entropia dele. Aí ele cumpriu o papel.”
Essa cosmologia da ausência ganha corpo — literalmente — com a criação dos Kagulaham, os agentes do Não-Jogo. Eles são a ferramenta de Shaydaan para corromper as mesas de dentro para fora. Mas não são caricaturas. Não são monstros com uma ficha padrão de D&D.
Zé Trevisan afirma que essa ideia emergiu das próprias mesas em que jogou. Não foi um constructo teórico isolado, mas algo que brotou organicamente da experiência real. Um jogador irritado. Um grupo que se desfez por um churrasco. Uma amizade que evaporou numa discussão. São eventos banais, mas que, no universo simbólico do livro, são derrotas reais para Shaydaan.
“Às vezes não tem ninguém do mal na mesa. Às vezes o vilão é um churrasco. […] Isso é o Não-jogo funcionando. […] Ele tá dentro e fora da narrativa.”
Essa fusão entre plano simbólico e plano social é uma das marcas mais sofisticadas do texto. É uma das ideias mais provocativas do cenário — e também uma das mais geniais.
Porque o que está sendo dito aqui, mesmo nas entrelinhas, é algo imenso: o valor do jogo está no jogador. Matar um personagem não é só eliminar um avatar — é interromper um vínculo, um investimento emocional. Quando um Kagulaham elimina um PJ, ele avança. Ele se fortalece. Porque matou a presença. Porque matou o jogo.
“Essa explicação aparece nas narrativas que a gente fez jogando”, revela Zé. Ele mesmo afirma que, se o livro tivesse sistema próprio, essa mecânica estaria formalizada. Mas a escolha foi outra: manter o cenário agnóstico. E, nesse contexto, a ideia de XP apenas por PJs funciona mais como um conceito dramatúrgico do que como regra. Um vislumbre, como ele mesmo diz. Uma diretriz que o Mestre pode adotar — ou apenas temer.
O exemplo que ele dá é quase cômico, mas profundamente trágico: “Um jogador briga com outro por causa de um churrasco, e isso é o Não-jogo funcionando, sendo vitorioso”. Não há ficha para isso. Não há salvaguarda. É o tipo de antagonismo que emerge de falhas humanas, e que, por isso mesmo, é mais poderoso do que qualquer Lich. Porque é mais comum. Mais próximo. Mais letal.
Em Brumas de Nivellon, os Kagulaham, apesar de sua origem cósmica, não são entidades distantes. Eles estão dentro do jogo. Influenciam reis, manipulam nações, moldam guerras. Mal’Gorath, por exemplo, é um deles. Agiu de forma sutil em Ramashima, causando um conflito global. Sequestrou Shandler, filho de Sargon. Usou o corpo de Nimyel para mascarar sua presença. Planejou uma emboscada usando PJs como isca. Tudo isso está no livro. Mas não está escrito como “chefe final”. Está apresentado como interferência. Como o Não-Jogo se infiltrando no jogo.
É por isso que o Mestre nem sempre sabe quando está diante de um agente do Não-Jogo. Às vezes, só percebe quando a mesa já está ruindo. Quando o grupo já está desmotivado. Quando ninguém mais responde às mensagens. Shaydaan venceu — e ninguém percebeu.
O mais surpreendente é que, apesar desse peso simbólico imenso, a obra não apela ao terror. Não há pânico. Há melancolia. Há delicadeza. Há uma tentativa constante de oferecer esperança, mesmo que em camadas tênues. Porque o próprio autor sabe que o livro é, acima de tudo, uma tentativa de impedir esse fim.
“Minha realidade morreu e eu forjei uma nova realidade”, ele diz. E nessa nova realidade, jogar é resistir. É criar. É recomeçar. O cenário existe não como espaço de novidade, mas como espaço de continuidade. “A Planisféria foi feita de fragmentos de mundos que perderam a luta contra Shaydaan”. Mas foi feita. E está viva. E pode receber outros fragmentos. Outros jogadores. Outras histórias.
A ausência de um sistema não é um descuido. É uma tática. “RPG é diversão, e diversão não pode ser impositiva”, defende Trevisan. E ao abrir mão de um conjunto fechado de regras, ele remove uma das maiores barreiras de entrada para novos jogadores. Porque o objetivo é que se jogue. Com qualquer sistema. Em qualquer lugar. A única condição é continuar.
Essa abertura deliberada — essa recusa de formalizar — é em si uma proposta política. Não institucionalizar o combate ao Não-Jogo é uma forma de dizer: a arma está com vocês. Cada mesa decide como combater. Cada grupo inventa seu próprio remédio.
Críticas são possíveis, claro. A mecânica dos Kagulaham, em Brumas de Nivellon, poderia ter sido mais explorada. Exemplos concretos seriam bem-vindos. Casos narrativos adicionais ajudariam Mestres menos experientes a incorporar a filosofia do Não-Jogo em suas sessões. Mas a falta de formalização não é falha — é estilo. É coerência com a proposta. É fidelidade ao risco.
No fim, o que Zé Trevisan constrói com Shaydaan é mais do que um vilão. É um espelho. Um lembrete cruel e necessário de que o RPG não é eterno. Que ele depende de pessoas. De tempo. De afeto. E que, se não cuidarmos dele, ele desaparece.
Mas enquanto houver um grupo disposto a abrir um PDF, improvisar um vilarejo, criar um nome para um mercador, jogar um d20, d12, pedra, papel e tesoura,… Shaydaan ainda não venceu.
E isso — isso já é uma vitória.
A Tragédia da Última Sessão e a Entropia como Vilania
Shaydaan é chamado de Devorador da Esperança porque ele não destrói mundos com trovões, mas com aniversários, casamentos e promoções no serviço. É o vilão que se fortalece quando todos estão ocupados demais para jogar. Ele não precisa agir — ele só precisa que o grupo silencie. E, como nos diz o autor:
“O Não-jogo vence quando ninguém mais jogar. Aí ele zera a entropia dele. […] Ele só ganha quando ninguém mais jogar.”
Há uma tragédia silenciosa embutida nessa frase. Não há combate. Não há catarse. Não há vilania tradicional. O que existe é o desgaste acumulado, a normalização do adiamento, o mundo real se intrometendo no fantástico até soterrá-lo. Shaydaan é esse soterramento — e a resistência a ele é o próprio ato de continuar jogando.
O jogo, nesse contexto, não é uma campanha. É uma afirmação existencial. Como se cada jogada de dado dissesse: “ainda estamos vivos poha”. E é essa consciência que torna o cenário tão extraordinário. Porque ele reconhece que a verdadeira tensão dramática não está no castelo que pode cair, mas no grupo que pode nunca mais se reunir.
O Vilão Que Você Já Enfrentou — e Perdeu
O poder de Shaydaan está, justamente, no fato de que ele já venceu quase todo mundo. Ninguém que jogue RPG há mais de cinco anos escapou de perder um grupo para o tempo. E esse é o maior golpe do autor: ele não inventa uma ameaça — ele nomeia a ameaça real. A que todos conhecem. A que já levou suas campanhas. A que dissolveu mesas de uma década. Como citado acima:
“A minha primeira mesa de RPG durou quase 10 anos. E aí ela se desfez por conta disso. A vida adulta levou todos embora. […] Então a minha realidade morreu, e eu forjei uma nova realidade.”
O próprio autor admite que há espaço para mais. O livro é uma semente. Não uma enciclopédia. E, se for plantada, a árvore que nascerá terá muitas faces — mas todas terão em comum o desejo de continuar jogando. E, com isso, de vencer Shaydaan mais uma vez.
Nivellon é esse gesto de forjar. Mas Shaydaan é o acontecimento que exige a forja. A dor silenciosa que obriga à criação. A memória que só permanece viva se for recontada.
Como Resistir ao Inominável
É possível identificar um desejo não apenas narrativo, mas também editorial: que essa metáfora seja expandida. Que mais agentes do Não-Jogo surjam. Que mais mestres consigam transformar frustração em design. Que mais livros enfrentem esse vazio silencioso que é parar de jogar sem saber que era a última vez.
“O sucesso vai ser ver que daqui 10, 15, 20 anos […] ainda tem uma base, ainda tem pessoas que entenderam a proposta e escolheram combater o Não-jogo na Planisféria.”
Esse combate, para continuar, precisa de suplementos. De sistemas. De gente jogando. O autor deixa claro que a obra é modular, viva, aberta. É um campo de batalha em expansão. E nesse sentido, não basta respeitar Shaydaan. É preciso enfrentá-lo com conteúdo.
Quando o Silêncio Tem Nome
Shaydaan, ao fim, é a formalização de um trauma coletivo. A voz que todos já ouviram, mas ninguém nomeava. O vilão que mora nas desculpas, nas semanas sem jogo, nos grupos de WhatsApp que nunca foram deletados — mas nunca mais se moveram. O maior mérito de Zé Trevisan é transformar esse silêncio em linguagem. E essa linguagem, em jogo.
Porque quando o silêncio tem nome, ele pode ser vencido. E para vencer Shaydaan, não é preciso derrotá-lo — basta continuar jogando.
Brumas de Nivellon e a Planisféria das Muitas Mãos — Fragmento, Experiência e Coerência Viva
Cada reino é uma voz. Cada voz é uma memória. E toda a estrutura é um esforço de não esquecer.
Se o RPG é um rito, a Planisféria é seu templo coletivo. Um espaço onde narrativas vindas de dezenas de vozes se mantêm coesas não porque compartilham um autor, mas porque compartilham um propósito: manter o jogo vivo. Não há como reduzir As Brumas de Nivellon à obra de um só. Zé Trevisan assume o papel de Nivellon: não um criador onipotente, mas um costureiro atento às linhas cósmicas que sustentam a costura da convivência narrativa. E isso começa na arquitetura: a gênese multiversal, os discos concêntricos, a cosmologia como fundação.
“A gênese multiversal, os discos, o sedimentar da coisa, tudo isso fui eu que escrevi. Isso é a base. Ela pode trincar, mas não cai. A ideia era dar uma estrutura sólida, que permitisse os jogadores não perderem tempo com detalhes quando forem jogar.”
O que impressiona aqui não é a originalidade da cosmologia, mas sua função. Ela existe para acolher a diferença. Para permitir que um reino escrito por um pai de família conviva com um reino criado por um adolescente. Que um mito inventado por um jogador iniciante coexistisse com um panteão forjado por uma veterana. O multiverso de Nivellon não é um palimpsesto: é uma galeria de vozes simultâneas. Mas com chão firme.
O Perigo da Polifonia — e a Coragem de Mantê-la
Essa ousadia carrega riscos. Tentar modular uma obra colaborativa sem transformar tudo num caos é tarefa hercúlea. A escolha de Trevisan foi construir uma “estrutura que sustenta”, para que os autores convidados — cada qual com sua história, seu tom, sua urgência — pudessem operar dentro dela com liberdade e segurança.
“O pessoal que colaborou com os reinos… a Sarcânia, a Sumânia, Ramashima… todos eles sabiam da base, sabiam do que não podia mexer. Cada um trouxe um mundo, mas dentro do mesmo disco.”
Esse “mesmo disco” é literal — na Planisféria, cada domínio existe sobre um dos discos concêntricos sustentados por um pino central. Mas é também metafórico: todos os mundos orbitam em torno de um mesmo eixo simbólico, que é a luta contra o Não-Jogo. Reinos podem divergir em cultura, clima, conflito, mas todos compartilham a urgência de continuar. A utopia aqui não é harmonia, mas resistência compartilhada.
Brumas de Nivellon e A Falta de Índice — Entre a Estética e a Limitação
Ainda assim, há desafios práticos. A ausência de um índice temático ou glossário prejudica a navegabilidade do livro. Especialmente para mestres iniciantes, acostumados com manuais estruturados, a fluidez narrativa do texto pode soar desorganizada. Não há confirmação, porém, se isso foi escolha estética ou limitação técnica.
“A gente fez o melhor que pôde com o que tinha. Não teve editora ditando coisa. Foi um processo orgânico mesmo. A Huginn entrou depois.”
Essa independência criativa, embora valiosa, talvez tenha custado em clareza estrutural. É algo que pode — e deve — ser revisitado em futuras edições, sem comprometer a alma da obra.
A Cidade da Aventura: Um Espaço Aberto ao Leitor
Se há um símbolo máximo dessa abertura à multiplicidade, ele é a Cidade da Aventura. Uma capital modular, deliberadamente incompleta, oferecida como convite.
“A ideia era que o leitor pudesse criar uma cidade, e que as melhores versões fossem anexadas ao livro em versões futuras. Isso é a continuação do combate ao Não-Jogo.”
A proposta é ousada: permitir que o próprio cenário cresça com o tempo, como um fórum narrativo. Um espaço vivo, onde novos autores podem entrar, não como apêndice, mas como continuidade orgânica da Planisféria. Cada nova adição será mais um ponto na colcha — mais um fragmento salvo da destruição de Shaydaan.
A Esperança Como Matéria Dramática em Brumas de Nivellon — Da Ficção à Transmissão de Legado
Nivellon sabe que vai desaparecer. E por isso mesmo, escreve.
É dessa consciência que nasce o coração pulsante de As Brumas de Nivellon. Não se trata de uma tentativa de imortalidade — mas de um testamento. Um gesto quase sacramental. O livro se apresenta como uma cápsula de tempo que não quer apenas ser lida: quer ser herdada.
A obra não deseja encantar o presente — deseja ser um sinal no escuro para aqueles que ainda não jogam. A frase dita por Trevisan na entrevista revela toda a dimensão prática e emocional desse gesto:
“O Brumas de Nivellon conseguir pular para a próxima geração, mesmo que eu não esteja mais aqui, o propósito do livro ainda vai estar seguro e garantido na próxima geração de jogadores que virão.”
O que se deseja aqui não é fama, nem canonização. É permanência. É a esperança de que o cenário sobreviva à entropia da vida — e que, mesmo que todas as mesas de hoje se calem, haja um reencontro simbólico em alguma garagem, porão ou mesa digital daqui a vinte anos.
Brumas de Nivellon Como Metáfora de Uma Criança Interior Que Resiste
Não há nada disfarçado nessa construção. Nivellon não é apenas um personagem. Ele é um eco. Um avatar de uma infância que se recusa a morrer. Uma espécie de último bastião da ludicidade, diante do avanço contínuo de Shaydaan. E o autor é explícito nisso:
“A vida adulta levou todos embora. […] Minha realidade morreu. E eu forjei uma nova realidade. Eu forjei o novo mundo.”
A forja, aqui, é simbólica. E, ao mesmo tempo, profundamente literal. Trevisan literalmente costurou lembranças, personagens, mundos e sistemas para criar a Planisféria. Mas o que está sendo costurado, de verdade, é o direito de continuar jogando. A criança interior precisa de um mundo onde ainda possa existir. E Nivellon é esse mundo. Como o próprio autor afirma:
“Nivellon é um personagem de jogador que não quer morrer. E ele sabe que só personagens de jogador podem ser heróis. Então ele tenta manter a mesa funcionando.”
Esse desejo de “manter a mesa funcionando” é, em essência, o que nos resta quando tudo o mais parece prestes a ruir.
Uma Herança que Respira: Do Pai para o Filho, do Mestre para o Mundo
A esperança de transmissão é tanto simbólica quanto prática. O autor fala de seu filho como uma testemunha:
“Meu filho é uma testemunha do meu material. Então se ele jogar RPG e ele jogar no meu cenário, o meu trabalho está cumprido, Faren.”
Essa frase é comovente por sua simplicidade. O que se busca não é glória editorial, mas continuidade afetiva. Um gesto silencioso de passar adiante uma chama acesa por décadas de jogo. Essa chama, segundo o autor, não se apaga se houver “pelo menos uma pessoa jogando com esperança” — mesmo que ele próprio já não esteja mais aqui.
Mas há algo ainda mais ambicioso: essa continuidade não precisa ocorrer apenas por meio do sangue, mas também por meio do afeto compartilhado do RPG. A comunidade pode — e deve — escrever dentro do mundo. Pode herdar, e também expandir.
Um Cenário Que Se Deixa Expandir
A estrutura da obra é deliberadamente agnóstica, como afirmado várias vezes. Ela permite o uso de qualquer sistema. E, mais do que isso, permite o enxerto de qualquer história. Ela não exige fidelidade: exige vida. E por isso mesmo, acolhe.
“O leitor pode usar suas histórias, sistemas, personagens e características de outros cenários em conjunto com As Brumas de Nivellon.”
Esse gesto — de abertura — é mais do que generosidade. É uma tática narrativa. Se o livro quer continuar existindo nas mesas do futuro, ele precisa se adaptar. Precisa permitir outras mãos. Precisa ser uma árvore que aceita novos enxertos. E o autor foi além: ele formalizou essa abertura na própria estrutura textual do livro.
A seção da Cidade da Aventura funciona como um convite. Um lugar de promessas não cumpridas — ainda. Um espaço incompleto, à espera de leitores-autores. A intenção é clara:
“As melhores serão anexadas ao cenário de maneira oficial.”
Há aqui uma humildade radical. O autor abre mão do controle total. Ele propõe que seu cenário não é definitivo — é transitório. E esse trânsito é o que o manterá vivo.
Entre o Legado e a Eternidade: Livros Morrem, Histórias Não
Há uma consciência aguda da efemeridade. O autor sabe que livros também somem. Que edições se esgotam. Que PDFs se perdem. Mas ele aposta em algo maior: que as histórias sobrevivem. Que os personagens de jogador — esses sim — são a verdadeira herança.
“Os livros, as histórias, elas transcendem as gerações.”
Essa frase, dita quase como consolo, é o verdadeiro núcleo da proposta. Shaydaan não pode ser vencido com combates. Mas pode ser derrotado com narrativa. A cada vez que alguém lê Brumas, ou adapta um reino, ou cria um novo personagem ali, o Não-Jogo falha mais uma vez.
A esperança aqui não é um final feliz. É um processo. Uma faísca que vai passando de mão em mão, de mesa em mesa, de geração em geração. Um RPG que sabe que não é eterno — mas que, por isso mesmo, se move. O legado, aqui, não é um sistema. É uma ideia: a de que ainda vale a pena sentar, jogar e lembrar.
Brumas de Nivellon e a A Obra Como Rito de Ousadia — Porque Alguém Precisava Ter Coragem
Um RPG sem sistema. Um mundo sem centro. Um vilão que é o tempo. E um autor que teve coragem de dizer: “o RPG está morrendo em silêncio”.
Zé Trevisan sabia o que estava fazendo. Não porque planejou tudo com precisão técnica — mas porque sabia que não havia mais tempo para esperar. O RPG, para ele, estava murchando nos cantos das salas, esvaziando-se em silêncios de WhatsApp, perdendo voz entre prazos e boletos. E alguém precisava dizer isso. Alguém precisava costurar um mundo com urgência. Mesmo sem linha suficiente. Mesmo com retalhos tortos. Mesmo com imagens feitas por uma máquina.
“Todas as imagens do livro, exceto duas, foram feitas através de inteligência artificial. Foi o único recurso que eu tinha. Eu procurei artistas parceiros, ninguém topou fazer na parceria.”
Não há defesa apaixonada da IA. Há confissão. O autor não romantiza sua escolha: reconhece que ela foi imposta por limitação de recursos. Mas, paradoxalmente, essa limitação virou estética. Porque Brumas de Nivellon não é uma obra sobre perfeição — é uma obra sobre sobrevivência. E sobrevivência, quase sempre, é feita de remendos. O autor usou o que tinha. Porque o que não podia faltar era a história.
A capa, desenhada por Lucas Edmundo, e o mapa da Planisféria, concebido por Ricko Hasche e embelezado pelos traços delicados de Vanessa Trevisan, esposa do autor, são exceções que reforçam o ponto: onde a arte humana pôde existir, ela permaneceu. A presença de Hasche não é apenas técnica — é simbólica. Tanto que Trevisan criou, dentro do cenário, uma Sociedade Cartográfica de Hasche, homenagem viva à contribuição que moldou o espaço físico do mundo. Já a costura gráfica que mantém tudo coeso — apesar das rupturas, das colagens e das brumas — é obra de Ronaldo Prado, que assina a diagramação, o design e o posfácio, operando não só como editor, mas como guardião da integridade visual e conceitual da obra. A função da arte aqui nunca foi ornamentar: foi sustentar a narrativa com o que estivesse ao alcance, com o que fosse possível. E quando não foi, recorreu-se à máquina — não por gosto, mas por urgência.
Uma Obra Que Quer Ser Jogada, Não Admirada
Zé Trevisan não quer ser celebrado como visionário. Quer ver alguém mestrando seu cenário em 2045, mesmo que uma pessoa só. Isso basta. A função do livro, como ele mesmo afirma, é permitir que o Mestre jogue sem se perder:
“Dar base fundamental para o jogo funcionar com explicações para o mestre não perder tempo com detalhes que jogadores perguntam.”
Essa funcionalidade é uma forma de generosidade. Não há armadilhas conceituais. Não há obscurantismo de regras. Há uma entrega: um mundo para ser usado. Modificado. Reescrito. O autor não está em busca de controle — está em busca de continuidade. Ele sabe que Shaydaan só vence quando ninguém mais joga. E, por isso, o livro precisa ser leve o suficiente para que qualquer um consiga usá-lo.
Críticas Técnicas, Mérito Existencial
Sim, há falhas. A diagramação, embora funcional, é irregular. A revisão textual poderia ser mais firme. As artes geradas por IA não alcançam a expressividade do texto. O sumário poderia ser mais completo. Um glossário ajudaria muito. Não há um guia dedicado a mestres iniciantes, nem uma cartografia interativa integrada à estrutura do livro.
Mas tudo isso empalidece diante do que o livro realmente oferece: coragem.
Essa visão de futuro não está atrelada a vendas ou aclamações. Está atrelada à sobrevivência simbólica. Trevisan não está criando um produto — está levantando uma tocha. E essa tocha precisa ser passada, geração após geração, mesa após mesa. Com ou sem manual. Com ou sem fanart. Com ou sem editora.
A Editora e a Ousadia Compartilhada
A Huginn & Muninn, editora responsável pela impressão, abraçou o projeto. Não apenas como prestadora de serviços, mas como parceira simbólica. Ronaldo Prado, um dos editores, assina o posfácio. Rogério Lobo e Quiroã Lopez também estão listados como responsáveis editoriais. O projeto nasceu no coletivo, e isso faz diferença. Não foi um lançamento isolado — foi um esforço compartilhado para que esse gesto de resistência ganhasse forma física.
Não há garantias formais de que a Huginn & Muninn acompanhará futuras publicações. Mas o vínculo está estabelecido. A parceria aconteceu. E, diante da modularidade do cenário, é legítimo esperar por expansões.
Uma Pergunta Final, e uma Promessa
Zé Trevisan não pergunta se você gostou do livro. Ele pergunta outra coisa:
“Se você perguntar para o Nivellon se ele acha que esse é o melhor livro que tem, ele vai responder que sim, porque ele só existe nesse livro.”
Esse é o ponto. Brumas de Nivellon é o único lugar onde Nivellon existe. E Nivellon precisa continuar vivo. Porque se ele morrer, morrem com ele todas as mesas que ele tentou costurar. E morre com ele, talvez, aquela última faísca de infância que ainda sobrevive em cada jogador que insiste em narrar, mesmo depois do expediente, mesmo depois dos filhos, mesmo depois da vontade.
Palavras Finais
Esta análise termina como o livro começou: com lamento. Mas um lamento cheio de luta. As Brumas de Nivellon, de Zé Trevisan, é uma obra imperfeita, mas absolutamente necessária. Porque ousa nomear o que todos sentimos — e ousa combater isso com palavras, mapas e fragmentos de mundos que nunca deviam ter morrido.
Não importa se o cenário será adotado em larga escala. Não importa se haverá prêmios. Importa que, por uma vez, alguém teve a coragem de escrever um RPG inteiro contra o esquecimento.
E isso basta.
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