D&D 2024 – Orcs: Monstros ou Personagens?
Somos todos culpados. Culpados por termos dado voz ao que não precisava ser discutido, culpados por alimentarmos uma guerra que só existe porque se recusa a morrer. Mas aqui estamos: orcs, monstros, personagens, estatísticas, lore, ética, cultura de RPG, política. Sim, política, porque tudo, no fim, se transforma em disputa de narrativas. E nós, como bons participantes desse tabuleiro, nos sentamos à mesa e jogamos. Mas quem, afinal, ganhou o jogo?
A revisão do Livro dos Monstros de 2024 abriu novamente essa ferida. Não foi intencional, ao menos não de forma explícita. Mas os orcs foram arrancados do bestiário e jogados na vastidão do Livro do Jogador, promovidos à categoria de seres jogáveis, livres da pecha de monstros inerentemente malignos. Para alguns, uma vitória. Para outros, um retrocesso. E assim, o ciclo continua.
Além da Cortina de Fumaça
Vamos esclarecer o problema para além da cortina de fumaça. O argumento central é simples: antes, os orcs tinham estatísticas próprias no Livro dos Monstros. Agora, estão diluídos dentro de blocos genéricos de humanoides. A decisão da Wizards of the Coast não foi apenas editorial; foi um gesto carregado de simbolismo. Ao retirar os orcs como inimigos pré-definidos, permitiu que eles fossem qualquer coisa – um bibliotecário, um pescador, um assassino. Mas também removeu a identidade mecânica que os fazia distintos nos combates.
E aqui está o dilema: para muitos mestres e jogadores, essa mudança tira um elemento de design importante. Sem estatísticas únicas, um orc “tough boss” é igual a qualquer outro “tough boss”. O que antes era uma presença reconhecível no campo de batalha agora é um conceito abstrato, dependente da customização do mestre. Algo se perdeu? Talvez. Algo se ganhou? Com certeza. Mas toda transformação carrega um preço.
Os mais fervorosos defensores da mudança argumentam que era inevitável. O jogo evolui. Antigamente, os elfos e anões também eram monstros no Livro dos Monstros. No entanto, hoje, ninguém discute sua legitimidade como personagens jogáveis. O mesmo vale para os orcs. Ao permitir que qualquer humanoide seja qualquer coisa, a nova abordagem dá mais liberdade ao mestre. Quer um orc feiticeiro? Um orc mercador? Está tudo lá, basta encaixar um bloco genérico e seguir adiante. O problema, claro, é que genericidade nem sempre significa diversidade. Se tudo pode ser qualquer coisa, tudo também pode se tornar nada.
O outro lado da discussão insiste que há algo na identidade de um orc que não pode ser simplesmente encaixado em uma ficha de guerreiro genérico. Eles tinham habilidades específicas: visão no escuro, fúria, agressividade. Agora, nada disso está na mecânica do jogo. O que distingue um orc guerreiro de um humano guerreiro? Fluff. Ou seja, pura interpretação. Para alguns, isso é suficiente. Para outros, é uma omissão grave.
E qual o ‘antecedente’ disso?
Essa mudança já vem sendo discutida desde edições anteriores. Em Advanced Dungeons & Dragons (1e e 2e), os orcs eram apresentados como criaturas bestiais, frequentemente servindo como inimigos de nível baixo para os jogadores enfrentarem no início da campanha (Gygax, 1977). Em D&D 3.5, orcs receberam um tratamento um pouco mais flexível, mas ainda eram apresentados como tribos bárbaras, violentas e guerreiras. A transição começou na 5ª edição de 2014, quando houve uma tentativa de aprofundar suas culturas, embora ainda mantendo-os como antagonistas primários (Monte Cook et al., 2014).
Desde 2020, a Wizards of the Coast já vinha sinalizando mudanças na forma como raças eram tratadas, em resposta a críticas da comunidade sobre representações racistas e deterministas. O suplemento “O Caldeirão de Todas as Coisas de Tasha” (2020) removeu bônus raciais fixos, permitindo que os jogadores moldassem seus personagens de forma mais livre. Agora, a transição no Livro dos Monstros de 2024 parece o ápice desse movimento, retirando completamente as fichas exclusivas de orcs e drow.
E tem ainda o aspecto moral. Desde os primórdios do D&D, a ideia de espécies malignas fixas sempre foi um problema filosófico. Fazer dos orcs inimigos naturais evocava conceitos de determinismo biológico que nunca estiveram longe de interpretações racistas. A mudança no Livro dos Monstros é, acima de tudo, uma resposta a essa preocupação. Os orcs não são mais vilões por natureza. Mas, claro, a transição não acontece sem resistência. Alguns jogadores sentem que isso descaracteriza a experiência clássica do jogo. Sem inimigos predestinados, mestres precisam construir novas justificativas para os conflitos. Para quem cresceu matando orcs sem pensar duas vezes, isso é um incômodo.
A discussão sobre a mudança
Em um artigo publicado no EN World (2024), diversos jogadores e designers apontaram que a mudança, apesar de positiva em termos de diversidade e flexibilidade, falha ao não fornecer diretrizes claras para adaptar NPCs às suas respectivas espécies. Esse vazio já existia no “Livro dos Mestres” de 2014, mas agora foi acentuado.
O impacto dessa mudança não é apenas mecânico. É cultural. O que faz de um monstro um monstro? É sua aparência? Seus hábitos? Suas estatísticas? O Livro dos Monstros 2024 declara, sem dizer explicitamente, que os orcs não são monstros porque podem ser qualquer coisa. Mas e os goblins? E os gnolls? E os duergar? A linha que separa criaturas jogáveis de criaturas bestiais ainda existe, mas ela está cada vez mais difusa. E isso incomoda muita gente.
A solução, para alguns, seria um meio-termo. Um pequeno guia, uma página perdida no Livro dos Monstros, com algumas diretrizes para adaptar PNJs às suas respectivas espécies. Algo simples, uma tabela com ajustes rápidos: orcs ganham agressividade, anões resistência a veneno, elfos percepção aguçada. Pronto, problema resolvido. Mas a Wizards não fez isso. Em vez disso, confiou no improviso dos mestres. Para muitos, isso soa como preguiça. Para outros, como uma libertação.
No fim, a verdade é que D&D nunca foi um jogo sobre regras fixas. Ele sobrevive pela capacidade dos jogadores de moldá-lo às suas necessidades. Mas também é verdade que as regras importam. Elas criam o tom do jogo, definem expectativas, estruturam conflitos. Se algo é mecânico, ele é concreto. Se ele depende apenas da imaginação, ele pode se tornar etéreo, transitório.
Orcs, no fim, são o que sempre foram: uma tela em branco, à mercê dos jogadores e mestres. Para alguns, isso é libertador. Para outros, é um vácuo. A questão não é mais sobre se os orcs são monstros ou não. A questão é sobre o que nós queremos que eles sejam. E essa resposta, como sempre, não está no Livro dos Monstros. Está na mesa de jogo.
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Paulo "Faren" Lima
Considera RPG terapia, trabalha na Stone Co, viciado em processos, nascido e criado no Tocantins, narra em The Witcher.
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