Tudo começou com uma falência. A Diamond Comic Distributors, empresa responsável por armazenar e distribuir produtos de dezenas de editoras de RPG, quadrinhos e brinquedos, declarou falência nos Estados Unidos no início de 2025. Em outros tempos, seria somente mais um naufrágio financeiro em um mercado onde margens estreitas e grandes nomes vivem em equilíbrio precário. Mas o que torna este caso não apenas singular, mas brutal, é a tentativa da Diamond de converter em dinheiro aquilo que não lhe pertence: estoques enviados por editoras como Green Ronin, Paizo, Goodman Games e até Marvel e DC Comics, que permaneciam somente estocados, aguardando distribuição, não venda judicial. Livros, manuais e caixas que, por contrato, continuam sendo propriedade de quem os criou, mas que, no pragmatismo cruel da falência da Diamond tenta transformar em garantia para pagar suas próprias dívidas — como se galpões e caixas fossem sinônimos de posse, e não de confiança. Vejamos os detalhes mais a frente.
Confira a Versão Resumida em Áudio
A Espinha Dorsal que Quebrou
É sempre nas vésperas de Gen Con que o mercado revela seus ossos expostos. No calor úmido de julho, quando o RPG deveria estar polindo seus dados e armando suas histórias, o que se ergue diante de nós não é uma feira, mas um tribunal. Não um tribunal de justiça, mas de interesses. Ali, a falência da Diamond Comic Distributors — que durante décadas sustentou boa parte da cadeia nerd norte-americana — tenta transformar contratos em penhores e confiança em saldo bancário. E entre as vítimas, talvez a mais vulnerável, está Green Ronin Publishing, aquela casa que nos deu Mutants & Masterminds, The Expanse RPG, Blue Rose e tantos outros mundos que, agora, ironicamente, lutam para não se tornarem apenas números depreciados em um leilão judicial. Como se fossem restos de estoque, não mundos inteiros.
O que acontece aqui não é apenas um processo legal, nem o simples relato de uma falência corporativa. É, sobretudo, a crônica amarga de um mercado onde o criador sequer possui o direito sobre aquilo que criou. Onde a propriedade intelectual, tão celebrada como o pilar da liberdade econômica, é rasgada por tecnicalidades jurídicas — neste caso, a ausência de um obscuro U.C.C.-1 financing statement, um documento invisível para quem passa seus dias escrevendo mundos e personagens, e não os defendendo nos tribunais.
O Estoque Como Refém: Quando a Distribuição Vira Sequestro
Segundo Nicole Lindroos, co-fundadora da Green Ronin, estamos diante de uma tentativa de apropriação indevida mascarada por um processo falimentar. A Diamond, ao solicitar que o tribunal lhe conceda o direito de vender estoques consignados, rompe não só contratos comerciais, mas vínculos de confiança que sustentavam todo o ecossistema independente do TTRPG.
O estoque, ainda não pago, permanece trancafiado nos armazéns da Diamond, enquanto os bancos — liderados pelo Chase Bank — aguardam ansiosamente para converter caixas de livros em dígitos que satisfaçam seus relatórios trimestrais. A falência não distingue obras de arte de paletes industriais. Para o capitalismo tardio, The Expanse RPG e um lote de parafusos têm o mesmo valor contábil: o que puder ser convertido rapidamente em fluxo de caixa.
Uma Falência Que É de Todos
Não apenas a Green Ronin foi atingida. A lista de empresas afetadas beira o grotesco pela variedade e importância: Paizo Publishing, Goodman Games, Roll For Combat, e até mesmo gigantes como Marvel e DC Comics figuram entre os mais de 100 nomes com estoque preso nos porões da Diamond.
Paizo no dia 2 de julho, por exemplo, já anunciou que seus lançamentos de agosto e setembro, incluindo o aguardado Starfinder Player Core e Pathfinder Battlecry, não estarão disponíveis em livrarias ou na Amazon. Em outras palavras, o maior distribuidor falido do hobby bloqueou o acesso ao público final. O que deveria ser um circuito transparente de produção e consumo tornou-se um labirinto jurídico onde o estoque se transforma em refém — e as editoras independentes, em mendigos digitais, forçados a lançar campanhas no GoFundMe para financiar advogados.
Gen Con: Do Palco ao Tribunal
Há uma ironia cruel no calendário: enquanto Green Ronin deveria estar preparando lançamentos como The Fifth Season RPG, aprovado recentemente por N.K. Jemisin e pronto para impressão, a empresa luta apenas para proteger o que já produziu. Gen Con, o ápice da celebração do RPG, transforma-se no pano de fundo de uma batalha judicial, onde quem perde não são apenas empresas, mas comunidades inteiras de jogadores, criadores e mestres que dependem dessas publicações para alimentar suas mesas.
Aliás, quem entende a importância simbólica da Gen Con, sabe que ela não é um evento comercial. É o ritual anual onde criadores e jogadores constroem alianças que nenhuma planilha financeira consegue prever. Ao atacar a Green Ronin neste momento, a falência Diamond não atinge apenas seu caixa. Ataca o coração emocional do hobby.
A Lógica Pervertida da Falência da Diamond: Como a Lei Protege o Credor, Não o Criador
A argumentação da Diamond baseia-se em um tecnicismo jurídico perverso: como os consignantes não registraram um U.C.C.-1 financing statement, seus estoques podem ser apropriados pelo espólio da falência. Em tese, a lei permitiria que a Diamond vendesse essas mercadorias “livres e desembaraçadas”, eliminando qualquer direito de propriedade anterior. Um roubo enorme aprovado por um PDF. A falência, então, se torna um exercício de oportunismo: aquele que não registrou preventivamente seus bens, perde-os. A propriedade desaparece, como se jamais tivesse existido.
Esse cenário expõe a fragilidade estrutural do mercado editorial do RPG e dos quadrinhos, onde pequenas e médias empresas confiam em contratos, não em advogados. Onde a confiança, e não a paranoia legalista, era a moeda corrente.
Claro, segue o trecho revisado com os números atualizados e um ajuste no tom reflexivo, preservando o estilo solicitado:
O GoFundMe: Último Reduto da Sobrevivência Criativa
Neste momento, a Green Ronin depende do Green Ronin Legal Defense Fund para levantar recursos suficientes para pagar os honorários advocatícios, taxas judiciais e outras despesas inadiáveis do processo. Até o dia 11 de setembro, a campanha arrecadou US$ 21.533, equivalente a 77% da meta de 28 mil dólares, fruto de 274 doações – números que impressionam pelo calor humano, mas que ainda não alcançam a blindagem necessária contra a engrenagem jurídica que protege bancos e liquidadores.
Aqui, a comunidade de jogadores e leitores se desloca de seu papel habitual: não mais apenas consumidores passivos de mundos de fantasia, mas guardiões de um mercado que só sobrevive quando suas vozes defendem, além dos dados e das miniaturas, os direitos de quem escreve esses mundos. O financiamento coletivo, tão banalizado por modas passageiras e projetos vazios, torna-se aqui um ato político e simbólico. Não é apenas um processo judicial que se sustenta com essas doações. É a própria ideia de que editoras independentes têm direito à existência e que a criação cultural não pode ser reduzida a uma linha no balanço patrimonial de um credor impessoal.
O Que Está em Jogo Não É Apenas Estoque, É Memória
Quando uma editora como Green Ronin perde seu estoque, ela não perde somente livros. Ela perde a possibilidade de continuar existindo como voz criativa. Perde capital de giro, contratos futuros, reputação com parceiros comerciais. Perde a capacidade de pagar salários e freelancers. Em última instância, perde a chance de lançar novos jogos que, como Mutants & Masterminds, formaram gerações inteiras de narradores e jogadores.
Se essa luta for perdida, o impacto será sentido durante anos. Não apenas nas finanças da Green Ronin, mas no próprio tecido cultural do RPG independente. A médio prazo, veremos menos diversidade, menos risco criativo, menos inovação. Porque quem investirá em um mercado onde seus produtos podem ser legalmente roubados por uma tecnicalidade contábil?
A Audiência da Falência da Diamond no Dia 21: O Último Round?
No próximo dia 21 de julho, a corte ouvirá as objeções das editoras afetadas. Será um momento decisivo, embora pouco noticiado fora dos círculos especializados. Ali, define-se se o RPG independente continuará a ter voz ou se será silenciado por uma lógica financeira que só reconhece o lucro imediato.
E, como em toda história trágica, paira a dúvida: mesmo vencendo no tribunal, Green Ronin já perdeu muito. Tempo, energia, recursos e a segurança de um mercado que não deveria devorar seus próprios filhos.
Um Chamado à Comunidade
Nicole Lindroos já disse o essencial: “Comprar livros e PDFs diretamente da loja da Green Ronin ajuda. Compartilhar o link ajuda. Doar ajuda mais ainda.” Mas talvez o maior auxílio que possamos oferecer seja não esquecer. Não esquecer que, enquanto jogamos nossos mundos fictícios, o mundo real conspira contra quem os cria, e a falência da Diamond não pode parar tudo isso.
Talvez, como no RPG, a verdadeira vitória não seja derrotar o dragão. Mas impedir que esqueçamos por que lutamos.
Para quem quiser se aprofundar, o Arddhu soltou um vídeo completo que aborda todo o assunto.
Atualização – 13 de julho de 2025: Competição com o Próprio Estoque e as Brechas no Capítulo 11
Nos últimos dias, novas informações vieram à tona sobre o colapso da Diamond Comic Distributors e seu impacto sobre editoras como Green Ronin, Paizo, Roll for Combat e muitas outras. E como todo bom desastre corporativo, quanto mais se investiga, mais se descobre que o buraco não está apenas na contabilidade — está no sistema.
Em participação no subreddit de Pathfinder 2e, Erik Mona, publisher da Paizo, afirmou que, embora a situação tenha sido “um grande golpe”, a editora vai sobreviver — ainda que com um orçamento mais apertado em 2026. No entanto, o que torna o cenário ainda mais perverso é que os estoques que a Diamond pretende vender — a preços baixíssimos — colocarão as editoras na incômoda posição de competir com seus próprios livros. A mercadoria, que não será revertida às editoras como pagamento, será despejada no mercado, canibalizando suas margens e esvaziando seu planejamento de vendas.
Stephen Glicker, do canal Roll for Combat, explicou em detalhes o tamanho da ferida. Sua empresa, que também distribuía livros pela Diamond, confirmou que alguns estoques foram enviados após a declaração de falência. Isso, segundo ele e outros envolvidos, abre margem para questionar se a Diamond ainda está realmente protegida pelo Capítulo 11. Afinal, ao continuar operando normalmente, aceitando novos produtos em consignação e mantendo negociações com editoras mesmo após o anúncio da falência, a Diamond pode ter cruzado uma linha jurídica tênue: ao se comportar como uma empresa ainda ativa, talvez tenha perdido parte da proteção que o processo falimentar lhe confere.
No vídeo “What Really Happened to Diamond Distributors”, Glicker afirma que, no caso da Roll for Combat, o custo de entrar com um processo seria igual ou maior que o valor retido — o que o obriga a recuar. Mas, para editoras com volumes maiores estocados ou com contratos mais relevantes, o incentivo para judicializar a disputa cresce a cada dia. Especialmente diante do argumento de que a Diamond quer vender não apenas os estoques anteriores à falência, mas também produtos recebidos depois dela. Há, portanto, um horizonte onde parte desse material possa ser recuperado, ou ao menos protegido legalmente contra a liquidação.
E o mercado, que num primeiro momento reagiu com apatia — confiando que a Diamond seria comprada por outra distribuidora e voltaria ao jogo — agora assiste ao desmonte em tempo real de um dos pilares da indústria. A confiança, que sustentava a cadeia editorial mesmo em momentos de retração, cede espaço à incerteza: o que impede, afinal, que amanhã outra distribuidora use os mesmos artifícios para transformar parcerias em penhores?
A história não está encerrada — e talvez nunca esteja. Mas hoje sabemos que a falência da Diamond não foi apenas um colapso logístico. Foi um ataque sistêmico à segurança jurídica de quem produz, imprime e distribui cultura em papel.