Em entrevista ao Semafor, ele se declara um “AI bull” (“um entusiasta convicto de IA”) e abre caminho para assinaturas que prometem remodelar a experiência de jogo, além de revelar detalhes sobre a estratégia de “volta ao lúdico” e os fracassos recentes na área do entretenimento.
Eu poderia começar este texto exaltando a genialidade do CEO da Hasbro, Chris Cocks, e sua jornada de 40 anos jogando Dungeons & Dragons. Poderia enaltecer sua tentativa de manter vivo o espírito do jogo, de valorizar a experiência lúdica, de se distanciar da febre da narrativa e retomar a essência da “brincadeira”. Mas não. Não sou ingênuo. A verdade, se estivermos dispostos a encarar sem ilusões, é que tudo isso compõe um teatro cuidadosamente ensaiado, uma mística de “retorno às origens” que mascara a realidade: o D&D, como conhecemos, já morreu — ou, na melhor das hipóteses, jaz seriamente comprometido pela obsessão corporativa por lucros rápidos.
A Nova Jogada: “Nós Voltamos ao Jogo”
Cocks tem repetido em declarações públicas e, sobretudo, nessa recente entrevista ao Semafor, que a Hasbro “precisou voltar ao jogo”. Em suas próprias palavras: “We pushed the pendulum way too far towards the storytelling side of the ledger“ (“Empurramos o pêndulo demais para o lado da narrativa”), sugerindo que a empresa perdeu o foco no design, na inovação e naquilo que tornou Dungeons & Dragons um fenômeno cultural. A compra bilionária do estúdio de entretenimento eOne, em 2019, por cerca de 3,8 bilhões de dólares, tinha como objetivo criar sinergias entre filmes, séries e brinquedos, replicando o modelo da Disney. Entretanto, a realidade bateu à porta: esse movimento não só falhou em gerar os mega-hits esperados, como levou a uma desesperada venda da eOne por cerca de 500 milhões, demissão de 1.100 funcionários — 20% em fração do valor original.
Ao admitir a guinada forçada, Cocks ressalta que a mudança de rumo não foi instantânea nem fácil. Houve pressões de acionistas ativistas, como a Alta Fox e a Ancora, que defendiam vender partes do negócio ou separar a unidade Wizards of the Coast. Ele comenta o quanto precisou “mostrar mais cartas” do que gostaria, pois, nas suas palavras: “We had to show a lot more cards than I think you otherwise would have as a new CEO.“ (“Tivemos que revelar muito mais cartas do que se esperaria de um novo CEO”) Essas turbulências atrasaram em cerca de um ano uma revisão estratégica urgente.
Ainda assim, a realidade corporativa fala mais alto: mesmo cortando 95% dos gastos em produção de conteúdo e optando por uma abordagem “capital-light” para suas marcas, a Hasbro continua em busca de soluções para valorizar franquias antigas, como My Little Pony, Transformers (cujos filmes já arrecadaram mais de 5 bilhões de dólares) e Magic: The Gathering — ao mesmo tempo em que tenta manter a chama de D&D acesa. Nessa toada, Chris Cocks fala em “conquistar mais consumidores” e prevê que parceiros invistam cerca de 4 bilhões de dólares em projetos de parques, filmes e outras licenças envolvendo o universo Hasbro ao longo dos próximos quatro anos.
A Postura de um “AI Bull”
Dentro desse cenário, o CEO deixa claro que a Inteligência Artificial é parte central do futuro das marcas. Ou melhor, “AI is a great leveler“ (“A IA é um grande nivelador”), segundo ele. Longe de se limitar a ferramentas de back-office, a IA surge como a nova fronteira de monetização para o Dungeons & Dragons, Magic: The Gathering e possivelmente até licenças infantis como Peppa Pig. Foi ele mesmo quem deu a entender que, em um futuro próximo, mestres de RPG poderiam assinar um serviço de IA que gera histórias, NPCs, mapas, vozes e todo tipo de recurso para enriquecer suas campanhas. “It’s supercharging fandom,” (“Está turbinando o fandom”), afirma Cocks, explicando que essa seria a forma de levar o hobby para novos patamares.
Mas há uma questão inevitável: quem de fato se beneficia desse “supercharging”? A IA pode facilitar a vida de jogadores, mas também pavimenta o caminho para uma monetização agressiva. Se hoje muita gente compartilha gratuitamente ideias, aventuras e material caseiro, quem garante que a Hasbro não buscará taxar esse conteúdo gerado por IA, encerrando ou limitando recursos essenciais atrás de assinaturas?
Ainda em tom otimista, Cocks fala que essa “democratização algorítmica” é uma via de mão dupla: os fãs podem criar e compartilhar, e a empresa teria meios de recompensar cada criador de conteúdo gerado. No entanto, o histórico recente de polêmicas sobre licenças e modelos de monetização (vide a crise em torno do OGL para D&D – neste vídeo, o Youtuber Arddhu explica em detalhes sobre esse escândalo) indica que o consumidor não está tão confiante assim.
Da Mística da Narrativa ao “Voltar ao Lúdico”
A grande ironia é ver a Hasbro tentando “voltar ao lúdico” depois de anos empurrando os jogadores para a fanfarra dos produtos licenciados. Cocks reconhece que a companhia “sacrificou” a inovação em jogos de tabuleiro e card games ao priorizar a mídia cinematográfica e televisiva. Para ele, esse “pêndulo” acabou gerando um desgaste na base de fãs e uma dispersão de investimentos. Em suas próprias palavras, “Maybe you sacrifice [the chance of having] a huge mega-hit upfront, but the chances of a huge mega-hit are pretty fleeting.“ (“Talvez você sacrifique [a chance de ter] um mega-sucesso imediato, mas as chances de isso ocorrer são bem fugazes.”)
Mas a pergunta permanece: essa guinada é realmente um regresso sincero ao cerne do RPG, ou apenas outro plano para “alugar” a imaginação dos fãs em troca de microtransações contínuas? Ao vender a eOne, a Hasbro se livra de um braço de produção caro, mas não deixa de mirar parcerias externas para lançar séries, filmes e jogos eletrônicos. Em tese, transfere o risco para terceiros — e, se alguma dessas apostas der certo, ela lucra com o licenciamento.
“Nós Não Estamos Atendendo 85% dos Consumidores”
Há outro ponto que Cocks costuma repetir: a empresa não atende a maioria dos consumidores no mundo. Especialmente quando fala dos próximos “bilhões de crianças” que nascerão em países emergentes. Ele cita um exemplo curioso, mencionando knockoffs de Transformers que encontrou em Hong Kong, com nomes como “Poptimus Prime” e “Humble Bee”. Em vez de tentar proibir esses clones, Cocks questiona: por que a Hasbro não pode produzir brinquedos em larga escala e baixo custo também? “We’re missing the right vendors… or our design standards are not right.“ (“Estamos deixando de ter os fornecedores adequados… ou nossos padrões de design não estão corretos.”)
A lógica é simples: se há tantos genéricos baratos por aí, significa que existe mercado para produtos oficiais mais em conta — desde que a empresa saiba contornar custos de produção e adequar padrões de segurança. Isso se aplica a D&D? Talvez sim. Talvez tenhamos “versões populares” do jogo surgindo em mercados emergentes, embora a Hasbro não deixe claro como seria esse modelo. A intenção, porém, está explicitada: abranger o maior público possível e, de quebra, expandir as fontes de receita.
A Encruzilhada do RPG e da IA
Em se tratando do D&D, esse “voltar ao lúdico” vem cercado de declarações de que a jogabilidade deve estar no centro, ao invés da narrativa. Contudo, a jogabilidade humana, repleta de improviso, falhas e criatividade espontânea, pode rapidamente se transformar em um espaço invadido por sistemas de assinatura que entregam soluções prontas. E é aí que a IA entra como um catalisador para a monetização.
Imagine que um Mestre queira organizar uma campanha de horror gótico. Com a IA oficial da Hasbro, basta selecionar o tema, o cenário, os inimigos, e pronto: surge uma narrativa completa, com mapas detalhados, fichas de monstros, diálogos pré-prontos e até mesmo trilhas sonoras. Parece mágico, não? Até você reparar que cada item adicional — um novo “boss”, um artefato lendário, um pacote de vozes personalizadas — custa créditos extras ou faz parte de um nível superior de assinatura.
Cocks, claro, defende que isso “liberta” o jogador do trabalho pesado. Mas muitos diriam que esse “trabalho pesado” é justamente onde mora a magia do RPG. É no processo de criar, errar, improvisar e compartilhar ideias que se constrói a narrativa coletiva. A IA transforma tudo em um fluxo polido e hiper-eficiente, mas a um preço não só financeiro, e sim conceitual.
Pressões, Lucros e a Eterna Busca por Crescimento
A Hasbro como um todo enfrenta desafios. Em seus depoimentos, Chris Cocks dá a entender que a empresa busca um crescimento de “médio dígito” (em receita) até 2027, pretende melhorar margens de lucro e reduzir dívidas. Ao mesmo tempo, precisa lidar com dificuldades geopolíticas: cerca de 40% da fabricação de brinquedos ainda ocorre na China, e a guerra comercial e tarifária poderia encarecer substancialmente a importação de produtos. Ou seja, há todo um contexto global que pressiona a companhia a encontrar soluções criativas (leia-se: lucrativas) em diferentes frentes.
Seja vendendo licenças para novos filmes dos Transformers — cuja franquia já rendeu mais de 5 bilhões de dólares ao redor do mundo — ou injetando IA nos jogos, a mensagem é clara: não há espaço para ficar estagnado ou confiar apenas no público tradicional de D&D. Conforme Cocks explica, “um time só avança na velocidade da confiança que existe entre seus membros” — mas essa confiança, em nível corporativo, depende de resultados palpáveis.
O Legado que se Dissolve
Dungeons & Dragons emergiu das mesas de entusiastas contraculturais, um jogo que celebrava a liberdade criativa e o espírito colaborativo. Foi underground, herdeiro do espírito DIY (faça você mesmo), e conquistou gerações ao longo de décadas. No entanto, ao transformar-se numa engrenagem bilionária, o D&D perde parte de seu charme artesanal e cede lugar a estratégias de marketing e licenciamento.
Chris Cocks alega que, para manter a essência do jogo, é preciso confiar nos Mestres e jogadores, permitindo o “table talk” (“conversa de mesa”) e alimentando uma atmosfera de cooperação e diversão. Mas a própria Hasbro, com seus planos de inserir a IA em tudo, desperta preocupações: não estaríamos sacrificando o pilar fundamental do RPG — a imaginação genuína — em troca de conveniências pagas?
Por outro lado, é inegável que cada vez mais jogadores estão abertos a soluções digitais. Plataformas online para jogos de RPG de mesa se popularizaram, ainda mais durante a pandemia. Ferramentas de criação de personagens e de gerenciamento de regras fazem sucesso. Nesse sentido, a IA poderia ser vista como o próximo salto evolutivo, que manterá o hobby relevante. A grande incógnita é como equilibrar a inovação tecnológica com a preservação do coração do RPG.
Vale a Pena Jogar esse Novo D&D?
Se você é um veterano do RPG, que cultiva a prática de imaginar mundos e escrever histórias à mão, talvez se sinta deslocado em meio às plataformas de assinatura e à avalanche de conteúdos gerados por IA. Se é novato, pode achar tudo isso empolgante, enxergando possibilidades infinitas para criar campanhas épicas sem tanta curva de aprendizado.
No fim, a pergunta se repete: quão caro será esse “futuro”? Não apenas em termos financeiros, mas em termos criativos. Uma assinatura mensal? Pacotes de expansão? Microtransações para cada boss novo, cada dungeon inédita, cada voz personalizada do NPC que vai guiar seu grupo pelos esgotos de Waterdeep?
Chris Cocks, the CEO of Hasbro, deixa no ar a promessa de que a empresa está se preparando para uma nova era, onde “AI is a great leveler“ (“A IA é um grande nivelador”) e “table talk“ (“conversa de mesa”) ainda será preservada. Ele diz ser um “AI bull“ (“entusiasta convicto de IA”) — alguém que acredita incondicionalmente na força dessa tecnologia para impulsionar o engajamento dos fãs. A retórica é sedutora, mas esbarra em preocupações legítimas sobre a transformação de algo essencialmente criativo em um ecossistema de infinitas assinaturas.
Em resumo, mesmo com todo o discurso de “voltar ao lúdico”, a Hasbro não abdica de monetizar cada faceta das marcas que detém. A “volta” ao cerne do RPG parece menos uma reconciliação com as raízes do hobby e mais uma rolagem de dados calculada: sair de um investimento de risco (como a produção cinematográfica) para adotar um modelo recorrente de assinaturas e ferramentas de IA que seduzam a base de fãs.
A decisão final, em grande parte, cabe aos jogadores. Aceitarão essa evolução com entusiasmo ou vão enxergar nela uma traição aos princípios básicos do RPG de mesa? Independentemente da resposta, o fato é que essa discussão moldará o mercado nos próximos anos. Talvez D&D se torne, de fato, um híbrido digital anabolizado por algoritmos, com milhões de usuários acessando a “adaptação perfeita” para suas campanhas. Ou, quem sabe, surjam movimentos paralelos que resgatem o espírito alternativo e desafiem o monopólio da Hasbro.
O futuro do Dungeons & Dragons, assim como da própria Hasbro, permanece incerto. Certo é que Chris Cocks continuará falando sobre o uso de IA no RPG, buscando um lugar de destaque nesse tabuleiro onde a disputa entre autenticidade e lucratividade jamais cessa. Em última instância, cabe a cada jogador decidir se esse “retorno ao jogo” e à “essência lúdica” é apenas mais uma manobra de marketing — ou se há, na engrenagem corporativa, espaço para o improviso, a imaginação e o fascínio que fizeram do D&D um ícone cultural em primeiro lugar.