Os impérios ruem não pelo vigor de seus inimigos, mas pela complacência dos súditos que os sustentam. E no reino dos RPGs de mesa, onde Dungeons & Dragons reina absoluto há décadas, a insatisfação velada de jogadores presos ao mesmo sistema começa a fermentar. É aqui que Grimwild, um jogo nascido da mente de J.D. Maxwell e moldado pela arte de Per Janke, entra em cena.
Grimwild é um sussurro de revolta, uma promessa de algo novo, mas sem jogar fora o que já se conhece. Não se trata de um rompimento brusco com o passado, mas de uma transição sutil, uma ponte entre o comodismo do conhecido e a vertigem do inexplorado. Como convencer um jogador devoto de D&D a abandonar seu altar? A resposta de Grimwild é simples: não abandone, apenas expanda.
A estrutura está lá — classes, aventuras, monstros familiares —, mas o jogo envenena a fórmula com mecânicas que desafiam a previsibilidade. E se, ao invés de rolar um d20 e aceitar passivamente o resultado, o jogador pudesse negociar sua sorte? E se a narrativa fosse tão fluida que os desafios do jogo não fossem medidos por números frios, mas por forças vivas dentro da história?
Aqui, os personagens não são apenas estatísticas ambulantes esperando pela próxima jogada de dado. Cada classe — ecoando as doze tradicionais da 5ª edição de D&D — vem acompanhada de um mosaico de escolhas. Não se trata apenas de selecionar um caminho, mas de tecê-lo com nuances pessoais. Quer ser um paladino? Jogue os dados e crie um juramento inédito. Um mago? Sua magia não virá de uma lista predeterminada, mas da fusão entre improvisação e limites narrativos bem definidos.
Maxwell não inventou essa flexibilidade, mas a aperfeiçoou com um sistema que combina o caos controlado de Blades in the Dark com a letargia metódica dos jogos tradicionais. O resultado é uma montanha-russa onde os jogadores se veem oscilando entre êxitos gloriosos e falhas catastróficas, sem jamais estagnar em uma zona segura.
O Coração do Sistema: Dados e Destino
Grimwild rejeita a simplicidade do d20 e se entrega ao caos dos pools de d6, uma mecânica emprestada de jogos narrativos mais modernos. O sucesso não é binário; ele se estende numa escala que oscila entre o triunfo absoluto, o desastre completo e toda a zona cinza intermediária. Mas há um detalhe: os “thorn dice”, dados d8 que, quando rolam alto, corroem os resultados positivos. Um sucesso pode se tornar uma vitória amarga, uma falha pode ser uma tragédia absoluta.
É uma abordagem que lembra o velho ditado: “o destino não se pode enganar, apenas negociar”. Cada rolagem é uma aposta, cada decisão, um jogo de xadrez contra um oponente invisível que ora favorece os ousados, ora pune os imprudentes.
O sistema de progressão narrativa é outro sopro de inovação. Ao invés dos relógios tradicionais de Blades in the Dark, que marcam o avanço de eventos no jogo, Grimwild utiliza pools de d6. Sempre que um evento está prestes a acontecer — a fúria de um monstro, a dissipação de uma magia, o agravamento de uma ferida —, o Mestre rola o pool. Cada dado que cair entre 1 e 3 desaparece, acelerando o inevitável. Quando o último dado some, a consequência se desenrola.
Esse sistema introduz um elemento de suspense rarefeito nos RPGs mais convencionais. Se o relógio de Blades in the Dark é um metrônomo rígido que dita o fluxo da partida, o pool de Grimwild é um pavio aceso cujas chamas avançam de forma imprevisível.
A Magia da Interpretação
Para os amantes de conjuração, Grimwild oferece um sistema que navega entre a liberdade total e a rigidez matemática. Ao invés de listas de feitiços imutáveis, os conjuradores escolhem um domínio — uma força primordial que define os limites de seus poderes. Um mago da escuridão, por exemplo, pode extinguir uma vela sem rolar dados, cegar um inimigo com um teste de magia e, em circunstâncias excepcionais, envolver uma cidade inteira em trevas absolutas.
O jogo impõe barreiras, mas deixa espaço para a criatividade. Quer conjurar uma tempestade de fogo? Pode ser possível, mas o Mestre exigirá rituais, sacrifícios ou um alinhamento perfeito dos astros. O poder não é um botão que se aperta, mas uma negociação constante entre jogador e narrativa.
Isso transforma a magia em um verdadeiro elemento da história, ao invés de um catálogo de habilidades recicladas de jogo para jogo. Cada feitiço não é apenas uma mecânica — é um momento, um acontecimento, um risco.
Mestres e a Arte de Improvisar
Os jogos narrativos muitas vezes exigem um salto de fé por parte dos Mestres. Diferente dos sistemas tradicionais, onde encontros são meticulosamente planejados e balanceados, Grimwild encoraja uma abordagem mais fluida.
O livro apresenta uma seção robusta de conselhos, lembrando a forma como Dungeon World introduziu jogadores ao sistema Powered by the Apocalypse. Não se trata de improvisar sem rumo, mas de estruturar a história de forma que os jogadores sempre sintam que têm controle, mesmo quando o destino os empurra para o abismo.
Os story kits, por exemplo, são um recurso brilhante. Em vez de aventuras lineares com começos e finais pré-determinados, Grimwild apresenta conjuntos de ganchos narrativos, personagens e desafios que podem ser modulados conforme a necessidade. Quer introduzir um vampiro aristocrático na história? Basta usar o kit certo e encaixá-lo na trama em tempo real, sem precisar reescrever a aventura inteira.
Essa abordagem elimina uma das maiores barreiras para novos Mestres: o medo da incerteza. Com Grimwild, a história se constrói no momento, seguindo a cadência dos jogadores ao invés de um roteiro inflexível.
O Jogo que Vem e Vai
Grimwild adota o modelo Kevin Crawford de publicação, oferecendo uma versão gratuita robusta e uma edição paga com conteúdo adicional. A versão básica já é rica o suficiente para fornecer uma experiência completa, enquanto a versão premium adiciona mais classes, equipamentos mágicos e variações no sistema.
Esse modelo de distribuição reforça a ideia de que Grimwild não quer apenas vender um produto, mas criar uma comunidade. Os jogadores podem experimentar, testar e decidir se vale a pena investir mais no jogo. Não há um paywall sufocante, apenas um convite para explorar um novo mundo.
Grimwild não pede deserção — ele propõe uma fuga discreta, um experimento, uma viagem sem compromisso.
No final das contas, talvez a grande revolução não seja destruir o antigo império, mas convencer seus súditos de que há algo além das muralhas. Grimwild não quer matar o dragão. Ele quer mostrar que o castelo tem portas abertas para um mundo muito maior do que se imagina.