Entre centelhas, mortos — o novo cenário editorial brasileiro em 2025
Não estamos diante de anúncios comuns. O que se desenha aqui é um microcosmo do mercado brasileiro de RPG em 2025, onde duas frentes distintas disputam não só a atenção dos jogadores, mas também a possibilidade de reinventar como narramos, traduzimos e publicamos fantasia.
De um lado, temos Psicomaquia, um projeto autoral que desafia o próprio alicerce do D&D 5ª Edição com um cenário de guerra cósmica e metafísica. O Playtest 2 entrega um universo inteiro em conflito eterno entre entidades que enxergam os jogadores como formigas — exceto, é claro, quando suas almas despertam. Psicomaquia propõe mais do que uma campanha: oferece um experimento filosófico travestido de sistema compatível com o mainstream. Um híbrido que quer bater de frente com o oficial sem cair no abismo da “fantasia genérica”.
Ao mesmo tempo, o Book of the Dead chega ao Brasil pela New Order. Mas, diferentemente do que se espera de um bestiário, o suplemento de Pathfinder 2e não se contenta em listar zumbis. Ele dá ao jogador o direito de ser o monstro — literal e narrativamente. É um livro que entende que o fascínio pelo macabro não é só estético, mas também uma pulsão de agência, um chamado para inverter as regras da moralidade e da mecânica tradicional. A proposta é clara: se a vida é frágil, jogue com a morte.
Os dois projetos — Psicomaquia e Book of the Dead — têm em comum algo que vai além do RPG: a recusa à mediocridade. São, cada um à sua maneira, uma forma de dizer que o cenário brasileiro amadureceu. Que já não basta publicar mais um livro bonito, com capa metálica ou arte convincente. A questão agora é: por que esse livro existe? O que ele oferece além da fantasia reciclada?
Vamos destrinchar cada um desses lançamentos. E faremos isso sem a submissão reverente que muitos reservam ao “produto nacional” ou à grife internacional. Nem tudo que é novo é relevante. Nem tudo que é licenciado é seguro. Mas quando dois projetos surgem quase simultaneamente propondo:
- um cenário inteiramente novo de D&D 5e,
- uma reinterpretação narrativa da morte em Pathfinder 2e,
…isso precisa ser dissecado.
Psicomaquia: entre centelhas e abismos, um cenário que joga contra o próprio sistema
Imagine se o inferno e o céu travassem uma guerra tão longa e desinteressada que até seus soldados esquecessem por que lutam. Agora imagine que essa guerra afeta o tecido da realidade, distorce o mundo, devora almas e redefine as leis da física, da magia e da moralidade. Esse é o mundo de Nnume, onde Psicomaquia se passa — um cenário brasileiro que propõe mais que uma ambientação para D&D 5e: propõe uma insurgência contra o uso banal do próprio sistema.
Não é um cenário bonito. É um mundo quebrado. Um universo de perguntas filosóficas moldadas em forma de fichas, classes e testes. Mas é justamente por isso que ele brilha.
A RetroPunk Publicações por trás da loucura organizada
Antes de qualquer coisa, é importante reconhecer quem está por trás. A RetroPunk Publicações, editora consolidada no cenário nacional com títulos como Savage Worlds, Rastro de Cthulhu e City of Mist, é quem assina a publicação de Psicomaquia. A presença da RetroPunk não é um selo qualquer — é garantia de que o projeto vai além da boa vontade de autores independentes e recebe tratamento editorial, revisão e produção com padrão profissional.
Neste caso, o trabalho de texto, layout, arte e revisão foi conduzido por uma equipe criativa liderada por Marco Antônio “Boi” Loureiro, com contribuições significativas de Lucas “Mestre Taverneiro” Montenegro, G. Moraes e Mateus Herpich.
Uma guerra onde os deuses não se importam
Psicomaquia é alimentado por um universo devastado pela guerra entre os Etéreos — entidades que não são bons nem maus, apenas inconcebíveis. Essas forças colossais existem além do tempo e da lógica humana, e sua batalha constante distorce o plano material. Para os Etéreos, as criaturas mortais são irrelevantes, meras larvas existenciais.
Mas há uma falha nesse plano de indiferença cósmica: A Centelha.
Cada alma mortal carrega uma fagulha da força criadora do Multiverso, e essa centelha é o que permite que personagens — especialmente os jogáveis — resistam, enfrentem e até mesmo transcendam os próprios Etéreos.
Isso não é apenas uma explicação de lore. É o núcleo mecânico e filosófico do sistema. E aqui, Psicomaquia começa a mostrar sua força: cada escolha do jogador — de talento, de classe, de espécie — passa a ter implicações existenciais, não apenas funcionais.
Duas classes, uma nova espécie e dezenas de possibilidades
O Playtest 2 apresenta um conjunto mais robusto de ferramentas mecânicas:
- Animista: um personagem que se conecta com ecos da criação, manipulando forças ancestrais e canalizando efeitos espirituais.
- Apotecário (revisado): alquimista das sombras, manipulador de substâncias e mistérios, mistura ciência e feitiçaria para alterar corpos e mentes.
- Gargos: nova espécie jogável, amaldiçoados em forma e alma, híbridos entre matéria e espírito, perfeitos para representar os deslocados e fragmentados do universo de Nnume.
Além disso, o pacote de testes inclui:
- Duas entidades Etéreas completas, com estatísticas e narrativa;
- Um gerador de Efêmeras — regiões caóticas que se comportam como sonhos febris ou ruínas conscientes;
- Talentos, origens, equipamentos e itens mágicos que respeitam e ampliam a proposta temática do jogo;
- Uma linha do tempo inicial do cenário;
- Um guia sobre como integrar tudo isso ao seu jogo de D&D 5e.
📥 Download gratuito do Playtest 2: https://drive.google.com/drive/folders/1CrEuLD2Ia8VVDm8lMf2g8LJz4txaFSPQ
Legalidade e licenciamento: a alma jurídica do projeto
O que a RetroPunk realizou com Psicomaquia é raro no Brasil: um projeto que combina de forma transparente e segura três bases legais distintas para garantir sua estabilidade editorial. São elas:
- A OGL 1.0a, ainda usada para elementos da SRD 3.5,
- A SRD 5.1,
- E a mais recente SRD 5.2, ambas licenciadas sob a Creative Commons Attribution 4.0.
Essa base jurídica garante que o cenário se apoie na estrutura do D&D 5e com liberdade para expansão futura — incluindo compatibilidade com outras licenças abertas como a ORC License.
Arte, equipe e acabamento
Mesmo em fase de testes, Psicomaquia demonstra um cuidado gráfico incomum. A capa de Lucas Torquato estabelece um tom sombrio e evocativo. As ilustrações internas de Gabriel Feitosa, Amanda Brotto e outros complementam com identidade visual forte. A diagramação, provisoriamente conduzida por G. Moraes, é limpa, funcional e já supera muitas publicações comerciais.
Créditos principais:
- Texto e idealização: Marco Antônio “Boi” Loureiro
- Texto adicional: Lucas “Mestre Taverneiro” Montenegro, G. Moraes, Mateus Herpich
- Mecânicas exclusivas: Guarabyra Torro, Marco Antônio “Boi” Loureiro
- Revisão: G. Moraes, Mateus Herpich
- Arte da capa: Lucas Torquato
- Logotipo: Leonardo Devecz
- Stock Art Temporária: Dean Spencer, Anthony Cournoyer, Daniel Comerci, entre outros
Um projeto que exige — e recompensa — comprometimento
Psicomaquia não é um suplemento introdutório. E nem quer ser. Ele exige leitura, reflexão e desconforto. Foi feito para mestres exaustos de masmorras banais e jogadores que buscam mais do que bônus e dano crítico.
Se você procura jornadas lineares, com soluções simples e arquétipos confortáveis, pode se frustrar. Mas se busca um cenário onde cada nível é um grito contra o esquecimento cósmico, então esse livro é para sua mesa.
Participe da comunidade no Discord: https://discord.com/invite/8Vr6GFG
Apoie o financiamento coletivo no Catarse (estreia 09/09/2025): https://www.catarse.me/psicomaquiarpg
Book of the Dead em português: Pathfinder entre cadáveres e estratégias
Quem nunca quis jogar como um vampiro sem quebrar o sistema ou viver como um lich sem depender da boa vontade do mestre? Book of the Dead, recém-anunciado pela New Order Editora, traz ao Brasil uma tradução oficial que desafia o conservadorismo narrativo — e honra o melhor que Pathfinder 2e tem a oferecer: liberdade estruturada.
Diferente de um simples bestiário, o livro publicado originalmente pela Paizo em 2022 reconfigura o conceito de suplemento temático. Ele abandona a lógica de “catálogo de monstros” e mergulha fundo em um eixo narrativo único: os mortos-vivos. A proposta: não apenas enfrentar a morte — mas jogar com ela.
Geb, o Rei Fantasma — e o coração apodrecido da narrativa
No centro desse núcleo necromântico está Geb, o Rei Fantasma — figura tirânica das Terras Impossíveis. Suas reflexões e comentários ao longo do livro operam como uma espécie de diário necromântico editorial. O artifício funciona como lore, como comentário metanarrativo e como estrutura de ambientação, tudo ao mesmo tempo.
É o tipo de abordagem editorial que o D&D contemporâneo raramente ousa usar, limitado pelo receio de romper a unidade do “produto base”. Pathfinder 2e não sofre dessa amarra. Pelo contrário: Book of the Dead soa como uma dissidência interna — um grito zombificado de independência autoral.
E o Brasil, ao que tudo indica, terá acesso a esse grito com tradução oficial, arte original preservada e — caso o financiamento avance — até mesmo conteúdo extra exclusivo.
Modelo direto, metas claras e preços acessíveis
A campanha da New Order foge do padrão “megalomaníaco”. O foco é direto:
- R$ 30 pela versão digital,
- R$ 175 pela versão física,
- Sem combos confusos, sem metas inchadas, sem firulas de marketing.
As metas adicionais são igualmente enxutas:
- Aos R$ 20 mil, entra a aventura O Grande Roubo dos Brinquedos (originalmente distribuída no Free RPG Day),
- Aos R$ 30 mil, essa mesma aventura ganha versão impressa.
Nada além disso. E isso é bom. Porque o que o público de Pathfinder precisa não é de brindes. É de prazo, qualidade e clareza.
Um suplemento para quem entende o peso da morte
Ainda assim, Book of the Dead não é para qualquer mesa. Seu conteúdo propõe o questionamento da moralidade clássica, da estrutura de alinhamentos e da própria função do personagem. Jogar com mortos-vivos exige maturidade. Exige que os jogadores saibam quando protagonizar o horror — e quando ele virou apenas fetiche vazio.
Felizmente, o livro é consciente disso. A presença de reinos como Geb e Gravelands, onde campanhas inteiras podem ser ambientadas, demonstra que Book of the Dead não é só um manual de mecânicas: é um convite a um novo tipo de mesa.
Para mestres, o livro traz:
- 50 criaturas inéditas, de esqueletos a titãs necromânticos;
- A aventura pronta March of the Dead, com 22 páginas, ideal para personagens de 3º nível.
Para jogadores, oferece:
- Regras completas para personagens vampiros, liches, múmias, carniçais — com equilíbrio mecânico e design editorial à altura.
Não há necessidade de “templates improvisados”. Nem de negociação interpretativa para justificar monstros em campanha. Aqui, jogar como morto é parte do sistema, não um glitch de design.
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Quando a morte e a centelha dizem a mesma coisa
Ambos os lançamentos — Psicomaquia e Book of the Dead — rejeitam a lógica do conteúdo seguro, reciclado e superficial. Um nasce do abismo metafísico de um universo onde os deuses não se importam. O outro, das entranhas pútridas de um mundo onde os mortos contam suas próprias histórias.
E, talvez mais importante: ambos os projetos apostam que o jogador brasileiro merece mais. Mais profundidade. Mais risco. Mais comprometimento. Seja encarnando uma centelha diante do esquecimento cósmico, seja comandando uma legião de mortos em campanha profana — o que está em jogo é a reinvenção do que significa “jogar RPG” no Brasil.