Existe uma linha tênue entre o que é sonho e o que é limite. A primeira edição de Dungeons & Dragons nasceu exatamente nesse ponto de tensão. Com apenas $2.000 de orçamento total, CEM dólares foram destinados àquilo que hoje conhecemos como arte D&D 1974 — o embrião visual de todo um universo fantástico. Isso mesmo: a estética de dragões, dungeons e guerreiros icônicos surgiu do que, atualmente, não paga nem um ícone de app. Cem dólares. Em 1974. O que isso nos revela sobre o valor da fantasia? Sobre o valor da arte? Ou sobre o risco de apostar naquilo que o mundo ainda não sabe se vai funcionar?
Não é Nostalgia. É Desprezo.
Não, esse texto não é sobre nostalgia. É sobre desprezo.
Desprezo pelo tempo, pelas decisões, por essa ironia cravada nos ossos da indústria de jogos, em que a imaginação — a coisa mais cara do mundo — foi comprada a preço de banana em nome de uma urgência tola chamada “produção”. Gary Gygax não era um capitalista. Era um desesperado. Don Kaye estava morrendo, a TSR nascia sem capital, o jogo era um feto sem pai no hospital do acaso. E mesmo assim, contra todos os prognósticos que a lógica editorial poderia prever, decidiram imprimir mil cópias de um conjunto de livretos escritos em máquina de escrever e ilustrados por adolescentes, amigos de bar e cunhadas.
A Documentação do Absurdo
A história dessa arte D&D 1974 está documentada. Na Wikipedia, nas páginas do monumental Dungeons & Dragons Art & Arcana: A Visual History, nos relatos pungentes de Michael Witwer em “Empire of Imagination” e na reconstrução quase jurídica feita por Jon Peterson em “Game Wizards”. Está lá: $2.000. E desses, $100 destinados às artes — distribuídos entre Keenan Powell, Greg Bell, Cookie Corey, Don Kaye. Dois ou três dólares por desenho. Um royalty irrisório por cada mil cópias. Nem o romantismo da utopia sustenta esse número sem engasgar.
Isso não é economia. Isso é sobrevivência. Isso é medo.
E o medo, por vezes, cria monstros. Mas, aqui, ironicamente, criou Beholders.
A Arte imperfeita Como ato de Fé
A arte de Keenan Powell não é boa. E isso não é um ataque — é um elogio. Ela é desajeitada, imperfeita, amadora, visceral. Tem a mesma inocência de uma criança que tenta, com lápis de cera, recriar a Capela Sistina. O Acaeum, site de colecionadores que dedicam suas vidas a organizar e documentar as versões raras de D&D, mostra essas artes: rabiscos tremidos de gárgulas, elmos que não respeitam anatomia, dragões que parecem iguanas com asas de papel. E, no entanto… há algo ali. Algo mais verdadeiro do que a perfeição renderizada em 4K dos RPGs atuais. Porque havia algo que hoje não cabe em planilha: crença.
A mesma crença de quem ilustra por três dólares sem saber se será lido por alguém. A mesma crença de quem imprime 1.000 caixas de madeira falsa (as famigeradas “woodgrain boxes”) achando que talvez, apenas talvez, alguns wargamers excêntricos do Wisconsin comprem um exemplar. E compraram. E as cópias acabaram. E novas edições vieram. E os três dólares de Keenan se multiplicaram em milhões. Mas não para ela.
A Pergunta que Arde
E então vem a pergunta que arde, que queima como a fogueira que um inquisidor acende quando encontra algo que desafia o status quo: por que a arte foi tão desvalorizada?
Porque não havia escolha. Porque era isso ou não publicar. Porque o realismo capitalista é um monstro maior que qualquer Demogorgon ou uma arte de D&D de 1974. E mesmo assim, Gygax acreditava. E mesmo assim, Don Kaye morreu acreditando. E mesmo assim, Brian Blume entrou com $2.000 a mais para salvar a TSR. E mesmo assim, Keenan desenhou com 17 anos, à mão, em papel barato, sem saber que décadas depois estaria em museus, como no The Strong National Museum of Play.
A Fantasia no Porta-luvas
Hoje, empresas bilionárias usam as marcas fundadas por esses artistas amadores. Hoje, a Wizards of the Coast lucra centenas de milhões com propriedades intelectuais cuja gênese coube no porta-luvas de um Fusca. Hoje, jogadores exigem arte digital em alta definição para aprovar um produto no Kickstarter. Mas ninguém quer saber quem foi Keenan Powell. Ninguém quer saber que ela era a meia-irmã da esposa de Gygax. Que ela tinha 17 anos. Que seu pagamento caberia num Big Mac.
No Medium, um artigo recente relembra que os livros do D&D original eram vendidos por $10 em 1974. E mesmo com a aparência amadora, mesmo com as ilustrações mal proporcionadas, esgotaram em 10 meses. Porque o que vendia não era o acabamento. Era a possibilidade. A abertura. A chance de criar mundos.
Desenhar Portais com Três Dólares
O que Keenan e os outros fizeram — mesmo sem saber — foi desenhar portais.
E cada portal custava três dólares.
Se você ainda acredita que arte é commodity, que preço define qualidade, que orçamento define importância… então feche esse artigo agora. Vá assistir um unboxing de colecionador no YouTube. Vá para o Instagram. Vá contar quantos seguidores tem quem desenha melhor que Keenan.
Mas se, por acaso, você tiver o atrevimento de acreditar que a estética nasce do limite, então olhe novamente para as capas de 1974. Veja o que não está ali. Veja o que tentaram esconder com linhas tortas. Veja o que ninguém quis valorizar. E veja o que ficou.
O Eco de Sapkowski e The Witcher
Como curiosidade, abordamos neste artigo como Chainmail, um conjunto de regras para combates medievais em miniaturas, deu origem ao Dungeons & Dragons em 1974. Mas a história do D&D não começa apenas com regras — começa também com lápis mal apontados e ilustrações feitas às pressas, com um orçamento de apenas $100 destinado à arte e artistas locais pagos em moedas simbólicas por desenhos que hoje valem fortunas. Essa estética rústica, nascida da urgência e da precariedade, se tornaria o alicerce visual de toda uma cultura.
Mas essa história — do traço à fortuna — não se encerra no D&D. Ela ecoa, com amargura e ironia, em Andrzej Sapkowski, autor da saga The Witcher, que vendeu os direitos da sua obra à CD Projekt Red por meros US$ 9.500. Isso mesmo: nove mil e quinhentos dólares, em troca da base literária de uma franquia que se tornaria uma série de jogos, livros, HQs e adaptação televisiva da Netflix. Sapkowski, anos depois, pediu um pagamento adicional de US$ 16 milhões, argumentando que a venda inicial não refletia o impacto da marca. A CD Projekt Red acabou pagando um valor extra — ainda que sem obrigação legal — reconhecendo, com algum grau de generosidade estratégica, que a arte de um autor pode sim ser maior do que os contratos iniciais previam.
Mesmo sem precisar pagar. Mesmo sem dever nada. A CD Projekt Red pagou.
Ficou o Risco. Ficou a Arte.
Mais uma vez, a mesma lição: quando a arte é oferecida ao mundo, o mundo responde com descaso — e lucra depois com a beleza que ignorou.
A herança de uma arte de D&D de 1974. Ficou o traço. Ficou o risco. Ficou o erro.
Ficou a arte.