A Unearthed Arcana 2025 – Subclasses Apocalípticas trouxe quatro arquétipos de teste: Druida do Círculo da Preservação, Guerreiro Gladiador, Feiticeiro da Feitiçaria Profana e Bruxo do Patrono Rei-Feiticeiro. Seria apenas mais um documento de playtest, não fosse pelo eco imediato que gerou.

A tradução em português do documento, feita com o mesmo rigor de sempre, já está disponível para download gratuito no Artifício RPG. É parte do debate: traduzir é também dar voz, permitir que as mesas brasileiras participem desse teste global.
Resumo da Análise em Áudio
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Para muitos jogadores, a conexão foi inescapável: esse material parecia mais do que um conjunto de subclasses experimentais. Ele soava como prenúncio da volta de Dark Sun, o cenário apocalíptico de Athas. O Feiticeiro Profanador remete diretamente aos defilers, magos que sugavam a vida da terra para conjurar. O Bruxo do Rei-Feiticeiro ecoa os tiranos semi-divinos que governavam as cidades-estado com poder psíquico e opressão.
A comunidade reagiu rápido. Em fóruns e vídeos, surgiram comentários como “isso é Dark Sun, e estou feliz”. Outros, mais céticos, responderam: “a WotC nunca terá coragem de publicar Athas como ele realmente é, vão diluir os temas mais pesados”.
A questão deixou de ser apenas sobre subclasses. Tornou-se um debate sobre cenário, memória e risco editorial.
O Pano de Fundo: O Que Já Voltou
O espanto da comunidade ganha sentido quando olhamos o quadro recente dos lançamentos. Desde a chegada da nova linha de 2024, a Wizards debruçou-se sobre cenários clássicos:
- Forgotten Realms, com os suplementos Heroes of Faerûn (para jogadores) e Adventures in Faerûn (para mestres).
- Greyhawk, reintroduzido como foco central no novo Livro do Mestre.
- Eberron, retomado em Forge of the Artificer.
- Dragonlance, já explorado em Fizban’s Treasury of Dragons e Shadow of the Dragon Queen.
Com Realms, Greyhawk, Eberron e Dragonlance já revisitados, o vazio se torna óbvio: Dark Sun é o único grande cenário clássico que não voltou.

Por isso, quando um UA introduz classes que parecem arrancadas do coração de Athas, o impacto é maior. Não é apenas um playtest. É o possível aceno para preencher a lacuna mais gritante da linha editorial.
Por Que Dark Sun Não Voltou Ainda
No entanto, os motivos da ausência são conhecidos — e controversos.
No fórum EN World, uma longa discussão reuniu declarações de executivos da Wizards sobre o assunto. Kyle Brink, produtor executivo de D&D, afirmou em 2023 que Dark Sun é considerado “problemático em muitos aspectos”.
A crítica da própria empresa gira em torno de três pontos:
- Temas espinhosos: escravidão, genocídio, canibalismo e devastação ambiental são estruturais em Athas. Não dá para contar a história sem eles, e todos são difíceis de adaptar a um público mais amplo, como o comicbook.com colocou.
- Complexidade mecânica: psionismo como regra básica, ausência de deuses, magia profanadora que muda o ambiente, economia sem metal e escassez de recursos. Tudo isso exigiria um suplemento cheio de exceções às regras padrão.
- Aversão a risco: a linha de D&D 5e vem sendo desenhada para acessibilidade e compatibilidade. Dark Sun representa o oposto disso: um cenário radical, incômodo, que exige escolhas duras de design.
Esses fatores explicam por que, apesar da demanda dos fãs, Athas ainda não voltou oficialmente.
As Reações da Comunidade
Foi nesse contexto que a Unearthed Arcana caiu como centelha.
Nos comentários da comunidade compilados no tópico Unearthed Arcana: Apocalyptic Subclasses, as falas se repetem em dois polos: celebração e receio. Alguns festejaram a coragem da Wizards de trazer de volta, ainda que disfarçado, o sabor de Athas. Outros foram taxativos: a empresa não publicaria escravidão ou devastação ambiental como parte central de um livro, e o cenário chegaria enfraquecido.

O canal D&D Fanatics destacou em sua análise que o Feiticeiro Profanador é praticamente a mecânica do defiler, e que o Bruxo Rei-Feiticeiro não deixa dúvidas de onde veio a inspiração. Para o Pack Tactics, o documento funciona como balão de ensaio: mede a reação da comunidade para avaliar se vale o risco de trazer Athas de volta. Já o crítico Arddhu, em seu vídeo no canal Azcalibur, chamou atenção para um ponto recorrente: mesmo que haja indícios de Dark Sun, é mais provável que a versão final seja suavizada, como aconteceu com Spelljammer e Planescape.
Assim, a UA acendeu a discussão que a Wizards vinha evitando.
A Travessia que se Abre
Diferente de outras críticas que já fiz sobre as propostas e execução das UAs, não vou aprofundar nas subclasses neste momento — isso virá agorinha. Ele registra que as Subclasses Apocalípticas não foram lidas como simples protótipos. Foram interpretadas como sinais.
Sinais de que a empresa pode estar testando a recepção a Athas. Sinais de que a comunidade ainda deseja o retorno de um dos cenários mais sombrios e ousados de D&D. E sinais também de que, se esse retorno acontecer, ele virá carregado de disputas sobre o quanto se pode — ou se deve — mudar em nome da acessibilidade.
O horizonte é apocalíptico. E a travessia, inevitável.
Bruxo do Pacto Rei-Feiticeiro: O Tirano de Areia e Voz
Um Nome que Não Deixa Escapar

Poucas palavras carregam tanto peso em D&D quanto “Rei-Feiticeiro”. A Unearthed Arcana 2025 poderia ter escolhido qualquer outra nomenclatura, mas não o fez. E o resultado foi imediato: a comunidade leu ali não um patrono genérico, mas um chamado direto para Athas, o mundo arruinado de Dark Sun.
Os próprios designers, em postagem oficial no D&D Beyond, dizem que este pacote de UA “mergulha em temas de sobrevivência e corrupção” ao apresentar quatro subclasses apocalípticas. Para a maioria, o termo Sorcerer-King Warlock é inequívoco — quase impossível separá-lo dos déspotas de Athas, que governavam cidades-estado com punhos psíquicos e mão de ferro.
Se a Feitiçaria Profana lembra os defilers (ou profanadores, magos de Dark Sun que obtinham mais poder arcano ao custo de devastar e esterilizar o próprio mundo ao redor), aqui o eco é ainda mais claro. O Bruxo não serve a uma arquifada bem fresca, nem a uma entidade cósmica distante. Serve a um tirano monstruoso, a um semideus terreno, a uma caricatura de poder absoluto.
A Experiência do Medo
O design da subclasse reforça esse papel de arauto da tirania.
- Presença Intimidante: logo no nível 3, proficiência e especialização em Intimidação. A ficha de personagem passa a carregar, no papel, a capacidade de fazer tremer inimigos e subjugar aliados.
- Voz da Tirania: conjurar Comando como Ação Bônus, sem gastar espaço, várias vezes por Descanso. O poder de dizer “ajoelhe-se” ou “fuja” e ver um turno inteiro de inimigo evaporar. A comunidade elogiou esse ponto como “fenomenal”, “hilariamente forte”, e ao mesmo tempo divertido para mesas que apreciam controle.
- Decreto Tirânico (nível 6): uma emanação que pode inspirar aliados (Vantagem em ataques) ou subjugar adversários (condição Amedrontado). O campo de batalha se torna espaço de obediência.
- Repreensão Vingativa (nível 10): aqui, o impacto é menor. Forçar novas jogadas e causar dano Psíquico não impressionou. O canal Pack Tactics classificou como “já vimos isso muitas vezes” — mais uma habilidade reciclada, pouco criativa para um arquétipo tão carregado de expectativa.
- Tirania Absoluta (nível 14): expandir o Comando e fazer criaturas amedrontadas falharem automaticamente. Forte no papel, mas criticado por se apoiar em uma magia de 1º círculo como capstone (nome dado para a habilidade final e mais poderosa que uma subclasse ou classe recebe). Contra inimigos imunes a medo, perde força; contra criaturas com Resistências Lendárias, vira mero consumo de recursos.
Esse contraste define a leitura: um início arrebatador, um meio morno e um final igual a série Game of Thrones. Ainda assim, o conceito narrativo — de um servo que transmite a ordem de seu soberano sobrenatural — se mantém intacto.
O Peso Psíquico
Outro detalhe chama atenção: o uso explícito de poderes psíquicos.
Em Athas, a psionia não é acessório, mas fundamento. A escolha de inserir magias como Espinho Mental e Estática Sináptica na lista de magias do patrono reforça esse DNA. Além disso, a habilidade de conjurar sem componentes Verbais ou Materiais ecoa a ideia de uma magia que vem de dentro, não da natureza ou de pactos divinos.
Para quem conhece Dark Sun, o aceno é claro. Para quem não conhece, pode parecer deslocado. Jogadores sem contexto reclamaram que “a psionia parece jogada ao acaso”. Mas é justamente esse detalhe que revela a intenção: sem psionia, o Rei-Feiticeiro seria apenas mais um patrono maligno. Com ela, o patrono se conecta àquela tradição onde cada ser humano carrega, latente, uma centelha psíquica.
Críticas e Paixões
A recepção foi mista.
- O D&D Fanatics destacou que o patrono é “inconfundivelmente Dark Sun”, um sinal de que a Wizards está testando terreno.
- O Pack Tactics elogiou Voz da Tirania, mas classificou o restante como “abaixo da média”. O capstone, em especial, recebeu críticas por falta de impacto em níveis épicos.
- O Arddhu, em seu vídeo, foi direto: se esse é o ensaio para Athas, o risco é de que a Wizards suavize os temas centrais, como já fez com outros cenários. Não criticou tanto o design mecânico, mas a filosofia por trás dele.
- Nos fóruns, alguns chamaram a subclasse de “hilariamente OP” e se disseram apaixonados pela ideia. Outros a descreveram como “mal cozida”, misturando conceitos sem se firmar em um foco.
O resultado é curioso: mesmo quem a critica, raramente critica a ideia. As críticas recaem sobre a execução. O conceito — servir a um Rei-Feiticeiro — é visto como rico, evocativo e poderoso.
Filosofia em Disputa
E aqui entra a questão central. O Patrono Rei-Feiticeiro é lido como ensaio para Dark Sun. Mas será que funciona fora dele?
A comunidade se dividiu:
- Muitos afirmaram que o flavor é tão forte que pode ser transplantado para qualquer cenário — um pacto com um imperador infernal, com um lorde vampiro, com um ditador imortal.
- Outros apontaram que sem o pano de fundo de Athas, a inclusão da psionia e o foco em “tirania apocalíptica” parecem incoerentes.
Esse debate não é apenas técnico. É filosófico. Testa se a Wizards está disposta a lançar algo assumidamente atrelado a um cenário polêmico, ou se seguirá a prática recente: diluir até que o conteúdo seja genérico o bastante para caber em todos os mundos, mas sem a coragem de ser radical em nenhum.
Ecos Históricos e Literários
Não há como falar do Rei-Feiticeiro sem evocar arquétipos. Tirania é um tema que atravessa eras.
- Os faraós divinizados do Egito antigo, vistos como deuses-reis que governavam pela força de sua presença.
- Os déspotas psíquicos da ficção científica, de Duna a Akira, onde o poder mental corrompe tanto quanto o físico.
- Os monarcas shakespearianos, como Ricardo III, que manipulavam palavras para subjugar tanto quanto espadas.
- Até ecos bíblicos: o Faraó do Êxodo, cuja palavra bastava para condenar um povo inteiro.
O Bruxo do Rei-Feiticeiro é herdeiro dessa tradição. Não é apenas um servo. É a boca de um deus terreno.
Perspectiva Global
Se Athas não voltar oficialmente, o Patrono Rei-Feiticeiro ainda terá valor. Ele já se provou jogável em mesas genéricas como “patrono imperador”, “senhor psíquico”, “deus-rei tirânico”. É adaptável, mesmo que perca parte de seu peso.
Mas em escala global, o que ele desperta é algo maior: a lembrança de que D&D já ousou. Dark Sun foi radical. Foi ambientalista, anti-escravidão, sombrio. Foi diferente. Hoje, cada passo da Wizards é lido não só pelo que entrega, mas pelo que evita. E a presença do Rei-Feiticeiro, com seus poderes psíquicos e sua voz de comando, reacende a esperança de que talvez Athas não esteja morto.
Travessia
A subclasse não é perfeita. Suas habilidades oscilam entre brilhantes e medianas, seu capstone decepciona, sua execução divide. Mas o que ela simboliza ultrapassa a matemática.
Ela é o lembrete de que o deserto continua chamando. Que a tirania ainda pode ser tema de jogo. E que, talvez, a areia de Athas esteja mais perto de soprar sobre a mesa do que pensamos.
Druida do Círculo da Preservação: O Guardião do Deserto e do Último Verde
Um Contraponto à Profanação
O Círculo da Preservação não esconde suas raízes. É, ao mesmo tempo, resposta e acusação. Em Athas, mundo de Dark Sun, a magia devastou o planeta. Os profanadores sugavam a vida de tudo ao redor para conjurar feitiços mais fortes. Os preservadores, em contraste, tentavam conjurar sem drenar o mundo, mantendo viva a pouca fertilidade que restava.

Os designers da Unearthed Arcana 2025 assumem que estas subclasses são “apocalípticas” e mergulham em “temas de sobrevivência e corrupção”, dito no mesmo post do Beyond. O Druida da Preservação é, portanto, a face da resistência: não apenas um curandeiro, mas aquele que planta vida em meio ao deserto, que ergue vegetação onde só havia pó.
Essa intencionalidade é inescapável. O Círculo da Preservação é o oposto do Feiticeiro Profanador. Onde um drena, o outro devolve. Onde um mata, o outro restaura. A dualidade não é casual — é a encenação em miniatura da luta central de Dark Sun.
A Fantasia da Restauração
A mecânica que carrega esse sonho é a Terra Preservada. A cada uso de Forma Selvagem, o Druida cria um cubo de energia revitalizante que:
- Concede Pontos de Vida Temporários a aliados.
- Cura condições debilitantes como Amedrontado ou Envenenado.
- Brota vegetação onde só havia terra estéril.
- Pode ser movido a cada turno, perseguindo aliados ou cercando inimigos.
Na prática, esse cubo é um refúgio móvel. Um “santuário verde” que se abre em pleno campo de batalha. O Pack Tactics admitiu “inveja” da habilidade e comparou-a diretamente ao Santuário do Crepúsculo do Clérigo — uma das mecânicas mais criticadas por excesso de poder.
A comunidade chamou de “obscenamente forte”, “absurdamente poderoso” e “super divertido”. O debate não foi se é fraco, mas quão acima da curva está. A comparação com o Crepúsculo é inevitável: ambos criam auras móveis que concedem pontos de vida temporários sem concentração. Mas o druida tem a vantagem de mover o cubo independentemente de si, algo que torna sua tática ainda mais flexível.
Entre o Equilíbrio e a Exageração
No nível 6, a característica ganha camadas: bônus em salvaguardas de Constituição (perfeitos para manter Concentração em magias) e dano Radiante a inimigos que entram na área. No nível 14, dobra de tamanho e ainda permite reduzir pela metade o dano de ataques sofridos por aliados.
É aqui que a crítica se acentua. Muitos veem a subclasse como subindo a barra de poder de forma evidente. Se já havia consenso de que o Clérigo do Crepúsculo precisava de contenções, agora o Druida da Preservação repete o modelo, com ainda mais versatilidade. Para alguns, é uma subclasse fenomenal; para outros, um desastre de balanceamento que certamente será nerfado.
O ponto mais criticado não é nem o poder em si, mas o custo: um único uso de Forma Selvagem, recurso que o Druida já recupera em Descanso Curto. Em termos de custo-benefício, o impacto é enorme demais para tão pouco gasto.
Restauração Facilitada e o Debate da Redundância
A característica de nível 10, Restauração Facilitada, dá ao Druida a capacidade de conjurar Restauração Menor ou Maior sem gastar espaço ou componentes. Tematicamente, faz todo o sentido. Um Druida devotado à preservação deveria ser capaz de eliminar envenenamentos, petrificações ou maldições com facilidade.
Mas, na prática, a comunidade achou redundante. Comentários a descrevem como “incrivelmente poderosa quando necessária, mas inútil em 95% dos casos”. Já estava previsto que o Druida teria essas magias preparadas; o ganho é marginal. Para alguns, é “uma habilidade chata”.
É curioso que a crítica aqui não seja por excesso de poder, mas pelo oposto: uma expectativa alta para algo que acaba soando como fita decorativa.
Quando o Flavor Desaparece com a Magia
Há, porém, uma crítica de sabor mais contundente: a vegetação criada pela Terra Preservada desaparece quando o efeito termina.
Para um círculo que se chama Preservação, eu confesso que esperava que essas plantas permanecessem, mesmo que pequenas, como sinal de regeneração duradoura. A mecânica, ao apagar tudo depois de 1 minuto, transmite mais a sensação de “magia ilusória” do que de “restauração”. Isso trai a promessa temática.
Essa percepção de “diluição” não apaga a força da fantasia geral, mas é um lembrete de que mecânica e narrativa precisam se alinhar para sustentar plenamente a ilusão de jogo.
Entre Esperança e Temor
A leitura mais justa, a partir das fontes, é dupla:
- Como fantasia, o druida da Preservação é fenomenal. Ele cumpre a promessa de ser o guardião do último verde, de lutar contra o deserto com cada sopro de magia.
- Como design, ele peca por excesso. Cria uma aura de buffs e debuffs tão forte que rivaliza com as subclasses mais criticadas da edição.
Esse duplo olhar ecoa exatamente a tensão da Unearthed Arcana: dar aos jogadores a fantasia desejada, mas arriscar desequilibrar o jogo em nome dela.
Leituras Ambientais e Políticas
É impossível não ler o Círculo da Preservação à luz do mundo em que vivemos. Num tempo de colapso climático, de desertificação crescente, de florestas destruídas, e a COP30 em Belém no próximo mês, um arquétipo que devolve vitalidade a campos estéreis não é apenas um recurso de fantasia. É metáfora.
Os preservadores de Athas, e agora este Druida de D&D 2024, ecoam os guardiões ambientais contemporâneos: povos indígenas que defendem a floresta contra a exploração, movimentos ecológicos que tentam regenerar terras arrasadas e cientistas que buscam restaurar solos mortos. É o jogo como espelho.
No campo literário, a imagem do restaurador também é antiga:
- Deméter, que traz a fertilidade de volta à terra após o luto de Perséfone.
- O mito do Rei Pescador, cujo reino é estéril até que um herói cure sua ferida.
- As narrativas pós-apocalípticas modernas, de The Road a Nausicaä do Vale do Vento, onde pequenos atos de preservação sustentam a esperança de mundos devastados.
O Druida da Preservação inscreve-se nessa linhagem. Ele é a promessa de que, mesmo quando tudo é areia, ainda pode brotar verde.
Filosofia de Design: Contraponto ou Repetição?
Há quem veja essa subclasse como apenas um “Domínio do Crepúsculo 2.0”. Mas as fontes indicam que a intenção era maior: colocar lado a lado profanação e preservação, numa simetria que só faz sentido em Athas.
O risco, claro, é que ao tentar agradar tanto, a Wizards tenha criado algo forte demais. Talvez a empresa conte com o playtest para calibrar números, mas dificilmente mexerá na fantasia central.
E isso é importante: o que precisa de ajuste são os números, não a ideia. Porque a ideia é potente, necessária, carregada de simbolismo.
Travessia
O Círculo da Preservação é, ao mesmo tempo, um triunfo temático e um tropeço mecânico. Triunfo porque resgata a fantasia de lutar contra o deserto, de devolver vida à terra — uma fantasia que hoje ressoa ainda mais forte, em um mundo em crise ambiental. Tropeço porque concede poder demais, cedo demais, com custo baixo demais.
É uma subclasse que, se ajustada, pode se tornar uma das mais memoráveis do D&D moderno. Mas mesmo se permanecer “quebrada”, já cumpriu um papel: lembrar que Athas existe, que o deserto chama, que ainda há esperança de verde.
Feiticeiro da Feitiçaria Profana: O Profanador e o Eco da Terra Morta
Não há mistério aqui: a Feitiçaria Profana é um aceno direto e inconfundível aos Profanadores de Dark Sun. No coração de Athas, cada conjuração arranca algo vivo da terra, deixando areia e cinzas no lugar. O planeta se tornou um deserto por culpa deles — e este Feiticeiro é, no fundo, a encarnação dessa escolha.
O texto do Unearthed Arcana 2025 não disfarça: “Seu poder inato suga a essência vital do mundo ao redor. Sob seu comando, criaturas adoecem e plantas murcham até se tornarem cascas secas.” Essa descrição não é genérica; é Dark Sun na essência. A intenção dos designers foi clara: explorar “temas de sobrevivência e corrupção” através de mecânicas apocalípticas.

Ainda assim, como outras subclasses, pode ser adaptada para cenários genéricos. O ato de sacrificar vitalidade em troca de poder ecoa arquétipos universais: necromantes, vampiros, magos de sangue. Mas a sua raiz está cravada em Athas, e é dessa terra morta que brota o sabor mais forte.
Profanar e Potencializar: O Preço do Poder
A característica central do nível 3 é Profanar e Potencializar. Ao conjurar uma magia, o Feiticeiro pode gastar seus próprios Dados de Pontos de Vida para adicionar dano.
É uma tradução mecânica elegante: vitalidade transformada em chama. Mas também é uma armadilha. Os Dados de Vida do Feiticeiro são d6, os menores do jogo. Cada dado gasto é um ponto de cura perdido em Descansos Curtos. A comunidade não tardou a reagir: “uma enorme armadilha”, “punitivo demais”, “não vale a pena o risco”.
A alternativa, Roubo de Vida, permite usar os Dados de Vida de uma criatura próxima. É tematicamente brilhante — drenar inimigos para se fortalecer. Mas o custo é pesado: só pode ser usado uma vez por Descanso Longo, ou gastando 3 Pontos de Feitiçaria. Além disso, depende de uma salvaguarda de Constituição (das mais comuns de sucesso) e falha automaticamente contra criaturas imunes à Exaustão. Resultado: uma mecânica que soa poderosa na teoria, mas que muitas vezes frustra na prática.
O design encontrou um dilema: ou sacrifica-se demais para ganhar pouco, ou depende-se de condições situacionais que limitam a fantasia.
O Corpo que Apodrece, a Magia que Cresce
No nível 6, o Conjurador Corrompido oferece compensações. Ignorar Resistências a dano Necrótico e Venenoso é tematicamente coerente, mas decepcionante: muitos esperavam que ignorasse também imunidades. O Manto Profano, que gera pontos de vida temporários ao converter Pontos de Feitiçaria em espaços de magia, foi comparado a uma versão de Armadura de Agathys. É útil, mas não suficiente para tornar a subclasse empolgante.
No nível 14, a Aura Definhante cria uma emanação que reduz dano recebido e devolve recursos quando inimigos morrem. É um bom reforço temático — a corrupção se espalha, a morte gera mais poder —, mas sofre de um problema prático: Feiticeiros raramente ficam próximos o suficiente para tirar proveito de uma aura de 4,5 metros.
E no nível 18, o Profanador Superior decepciona. Imunidade à condição Envenenado e Exaustão, expansão da aura para 9 metros, inimigos incapazes de se curar dentro dela. É útil em nichos específicos, mas fraco para um final épico. O reddit respondeu: “abaixo da média”, “não digno de nível 18”.
Entre a Inovação e a Armadilha
Não se pode negar que a Feitiçaria Profana é semi-inovadora. Usar Dados de Vida como recurso é um espaço de design raro em D&D. O conceito de consumir vitalidade é perfeito para um profanador. Mas a execução peca.
A mecânica principal é vista como punitiva demais. As habilidades seguintes não conseguem equilibrar essa perda. E o ápice final não recompensa a jornada. O contraste com o Druida da Preservação é gritante: onde o Druida foi acusado de “quebrado”, o Feiticeiro foi acusado de “fraco e desajeitado”.
Ainda assim, há vozes discordantes. Alguns jogadores destacaram o potencial explosivo: usar Dados de Vida de monstros com d20s pode dobrar o dano de uma Bola de Fogo. A ideia de transformar vitalidade bruta em destruição massiva agrada a quem gosta de risco total. Mas essa é uma leitura minoritária, quase teórica, diante da experiência prática mais comum: decepção.
Paralelos: Parasitas, Vampiros e Deuses Fome
A Feitiçaria Profana pertence a uma linhagem cultural mais ampla: a dos que consomem a vida alheia para sobreviver.
- Os vampiros que se alimentam do sangue dos vivos, metáforas de aristocracias parasitárias que drenam o povo.
- O mito grego de Erisícton, amaldiçoado a devorar-se de fome infinita após profanar um bosque sagrado.
- A imagem moderna de parasitas energéticos, em narrativas de ficção científica, que sugam a força vital de planetas inteiros (Galactus, em Quarteto Fantástico).
- Até figuras políticas da história — ditadores, corporações, impérios — que extraem recursos de populações e territórios até deixá-los estéreis.
O Feiticeiro Profanador se inscreve nesse arco simbólico. Ele é a personificação da fome. Sua magia não é criação: é consumo.
A Leitura Ambientalista
É aqui que o arquétipo ganha outra camada. Se o Druida da Preservação foi lido como metáfora da esperança ambiental, o Feiticeiro Profano é o retrato da exploração predatória.
Cada Dado de Vida gasto é como um aquífero drenado, um campo devastado, uma floresta queimada. O ganho imediato de poder se paga em longos danos futuros. A metáfora é atual, urgente: um mundo que queima petróleo, carvão e florestas por “um pouco mais de energia”, sem se preocupar com o custo.
Athas é um espelho: um planeta verde reduzido a deserto pela magia predatória. Nossa Terra é espelho também: rios secos, geleiras derretidas, desertos avançando. Jogar com a Feitiçaria Profana é encarnar esse dilema. O jogador sente, na pele, a tentação e o preço.
Filosofia de Design: Fiel ou Suavizada?
Os designers quiseram traduzir a fantasia do Profanador. Mas suavizaram. Em Dark Sun, cada magia deixava cicatrizes permanentes na terra. Aqui, a corrupção é abstrata: gasta-se um recurso numérico, descreve-se plantas murchando, mas o mapa do mestre continua intacto.
É uma escolha pragmática: regras de devastação ambiental em cada conjuração seriam impraticáveis em campanhas genéricas. Mas também é uma escolha de filosofia: a Wizards prefere metáforas seguras a sistemas radicais. É provável que, em uma versão final, essa abstração continue. O dano será sempre nos números, não no mundo.
Travessia
A Feitiçaria Profana é um espelho do dilema maior da Unearthed Arcana: Classes Apocalípticas. Como conceito, é impecável: traduz o coração dos Profanadores de Dark Sun. Como execução, decepciona: punitiva demais, fraca em níveis altos, confusa na prática.
Mas talvez seja exatamente essa tensão que importa. Jogar com essa subclasse é sentir a tentação do poder imediato e o peso de sua consequência. É arriscar-se a morrer por gastar demais. É encarnar, mesmo que de forma abstrata, a lógica que transformou Athas em deserto.
E é aqui que o jogo se torna metáfora. Porque o Feiticeiro Profanador não é apenas um personagem de D&D. Ele é cada civilização que consumiu além da conta. Ele é cada governante que trocou futuro por poder imediato. Ele é o retrato do nosso tempo.
O Guerreiro Gladiador: Sangue, Areia e Espetáculo
O Retorno das Arenas
Se o Feiticeiro Profano e o Bruxo do Rei-Feiticeiro evocaram de imediato os ecos de Athas, o Gladiador não deixa dúvida: este arquétipo de Guerreiro é um aceno direto às arenas de Dark Sun. O vídeo de Azcalibur reforça esse ponto: gladiadores eram peças centrais no tecido social de Athas, onde a violência não era apenas sobrevivência, mas entretenimento institucionalizado.

Os próprios designers reconhecem que a subclasse foi pensada com duas inspirações: videogames de luta clássicos (com seus golpes finais, contra-ataques precisos, teatralidade do movimento) e os gladiadores de Athas, cujas batalhas sangrentas nas arenas eram tanto política quanto espetáculo.
É possível transplantar o conceito para cenários genéricos — o gladiador como lutador de arenas em Forgotten Realms, ou campeão em torneios de Eberron. Mas o sabor é tão intrinsecamente ligado a Dark Sun que, para muitos, a subclasse “confirma em 100% que algo de Athas está em andamento”.
O Artista do Sangue
O Gladiador tenta algo incomum no Guerreiro: inserir o Carisma como estatística secundária, não apenas para interações sociais, mas como combustível de habilidades. É o combatente que luta para vencer, mas também para entreter; que precisa do olhar do público para completar a performance.
Essa ideia é sedutora. A brutalidade se torna espetáculo. O golpe é também encenação. Mas, como logo se percebeu no playtest, a execução mecânica ficou aquém da promessa. Muitos resumiram o Gladiador como “um guerreiro com nome chamativo”, sem identidade própria forte o suficiente frente a opções já estabelecidas.
O resultado foi uma leitura ambivalente: tematicamente atraente, mecanicamente frustrante.
Brutalidade: Golpes que Não Ferem Tanto
A principal característica de nível 3 é Brutalidade, que permite adicionar efeitos adicionais a ataques Corpo a Corpo. O Guerreiro pode infligir condições como Blefar (dar Desvantagem na próxima salvaguarda), Tropeçar (limitar ações do alvo) ou Sangrar (drenar vida). O número de usos é limitado pelo modificador de Carisma por descanso.
- Intenção: segundo os designers, era uma forma de “jogar mais” com as Maestria em Armas do novo D&D 2024, reforçando combos e estilos de luta.
- Recepção: a comunidade dividiu opiniões. Alguns elogiaram a chance de “dobrar” as maestria e criar sinergias interessantes, especialmente Tropeçar contra chefes.
- Críticas: a maioria, porém, foi dura. Muitos a chamaram de “manobras que não são manobras”, “geralmente piores que as do Mestre de Batalha”. Pior: não adicionam dano adicional, diferentemente dos dados de Superioridade do Mestre de Batalha. O baixo número de usos (mesmo com Carisma alto) reforçou a percepção de fragilidade.
Resultado: o que deveria ser o coração da subclasse foi lido como inovação tímida, inferior ao que já existe.
Teatralidade em Combate: Pequeno Bônus, Grande Promessa
Ainda no nível 3, o Gladiador ganha Teatralidade em Combate: proficiência adicional em perícias (Acrobacia, Atletismo, Atuação, Enganação, Intimidação) e bônus igual ao Carisma em alguns testes.
Tematicamente, é saboroso: o Gladiador não é apenas braço, é presença. Ele impressiona, aterroriza, seduz plateias. Mas, mecanicamente, o ganho é limitado: um bônus de +1 ou +2 raramente muda uma jogada de d20. Em comparação, o Mestre de Batalha pode adicionar +d8 com manobras.
Assim, o que deveria ser a tradução mecânica da teatralidade acaba restrito a flavor, sem peso real no jogo.
Aparar Teatral: A Dança que Falha
No nível 7, o Aparar Teatral introduz uma ideia cinematográfica: usar Reação para aumentar a CA com Carisma e, se o ataque falhar, realizar um contra-ataque com Brutalidade gratuita.
Visualmente, é perfeito: o Guerreiro rebate o golpe e devolve com estilo. Mas a execução foi recebida como frustrante:
- Limitado a uma vez por Descanso Longo, a menos que o jogador gaste um uso de Recuperar Fôlego.
- Comparado negativamente ao talento Duelista Defensivo, mais consistente e versátil.
- Avaliado como “super lame” e “patético” por parte da comunidade.
O que poderia ser um pilar da identidade do Gladiador virou truque situacional de pouco impacto.
Mutilar: O Ponto Máximo que Não se Sustenta
No nível 18, chega o ápice: Mutilar. Ao ferir um inimigo Sangrando, o Gladiador força salvaguarda de Constituição. Em falha, o alvo perde velocidade, CA e só pode realizar um ataque por ação.
No papel, parece devastador — potencial “boss killer”, capaz de “quebrar a economia de ações de um chefe”. Mas na prática:
- O efeito cessa com qualquer cura — até uma Poção de Vida normal.
- A limitação de “uma vez por Descanso Longo” é extremamente limitante.
- A exigência de falha em salvaguarda de Constituição torna o efeito pouco confiável contra inimigos de alto nível.
A comunidade resumiu: “uma ultimate muito fraca para o nível 18”. Contra conjuradores com magias de 9º círculo, a comparação é cruel.
Na Sombra do Mestre de Batalha e até do Campeão
A comparação inevitável foi com o Mestre de Batalha. E quase sempre desfavorável.
- O Mestre de Batalha tem mais usos, adiciona dano e oferece maior versatilidade de manobras.
- O Gladiador depende de Carisma, tornando-se uma subclasse com 3 atributos (Força/Destreza, Constituição e Carisma), sem retorno proporcional.
- Até o Campeão, considerado uma subclasse simplória, supera o Gladiador em consistência de dano e facilidade de uso.
Essa percepção deixou marcas: o Gladiador foi visto como um arquétipo de temática rica, mas mecanicamente pobre.
Paralelos Culturais e Históricos
O Gladiador de Athas carrega em si ecos universais:
- Roma Antiga: gladiadores escravizados que lutavam em arenas para entreter o povo e reforçar o poder imperial.
- Spartacus: símbolo da resistência, que transformou o espetáculo em revolta.
- Pão e Circo: a política de distrair com sangue para ocultar a miséria.
- Distopias modernas: Jogos Vorazes, Battle Royale, arenas televisivas em que a violência é arma de controle social.
- Videogames de luta: Street Fighter, Mortal Kombat, Tekken — onde combos e contra-ataques são espetáculo.
Esse arquétipo é a ponte entre esses mundos. É o corpo que sangra para entreter, o gesto que mata e encanta, o guerreiro que atua sob luzes e olhares.
A Leitura Sociopolítica
Mais do que classe, o Gladiador é metáfora. Ele expõe a lógica de exploração de corpos em nome de espetáculo.
- Exploração: gladiadores eram, na maioria, escravos. Em Athas, são propriedade dos Reis-Feiticeiros. No mundo real, refletem corpos transformados em consumo.
- Espetáculo de massas: violência como entretenimento, ferramenta de distração, controle. De Roma às distopias modernas, o jogo de arena é sempre política.
- Ambiguidade: o gladiador pode ser símbolo da opressão (marionete do império) ou da resistência (Spartacus). Esse dilema ecoa em Athas: lutar por glória nas arenas ou usar a mesma glória para derrubar tiranos.
Travessia
O Gladiador é, ao mesmo tempo, triunfo e tropeço. Triunfo porque resgata a teatralidade sangrenta de Athas e a inscreve nas folhas do Guerreiro. Tropeço porque suas mecânicas não sustentam o peso da promessa, ficando atrás até das opções mais básicas.
Ainda assim, ele cumpre um papel: lembrar que Dark Sun pulsa sob a superfície. Que a violência não é apenas sobrevivência, mas espetáculo. Que cada golpe pode ser cena, cada morte, aplauso.
O que falta é transformar essa narrativa em mecânica viva — não apenas sombra diante de um Mestre de Batalha, mas arena inteira. Porque o Gladiador, em seu cerne, não é o dano que causa, mas o público que silencia quando ele ergue a lâmina.
O Último Ato na Areia
O Gladiador encerra a rodada das Subclasses Apocalípticas com a mesma contradição que marca toda a Unearthed Arcana: um pé no passado radical de Dark Sun, outro na hesitação moderna da Wizards. Ele é promessa de sangue e espetáculo, mas também prova de como o design pode falhar em sustentar o peso da própria fantasia.
Olhado em conjunto com o Druida da Preservação, o Feiticeiro Profano e o Bruxo do Rei-Feiticeiro, o Gladiador completa o mosaico: preservação e profanação, tirania e resistência, brutalidade e performance. São peças que não escondem de onde vieram — e talvez por isso tenham causado tanto barulho.
O futuro de Athas ainda não está escrito. Talvez venha suavizado, talvez continue enterrado, talvez ressurja com coragem. Mas cada uma dessas subclasses reacendeu o debate: o que D&D pode ousar ser?
A tradução em português do documento já está disponível gratuitamente no Artifício RPG. Não é só um serviço — é um convite: participar do playtest, criticar, experimentar, e fazer parte dessa travessia que não é apenas de regras, mas de memória e imaginação.
O horizonte é de areia. O jogo agora é nosso.