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Dragon Delves e Como Não Fazer um Suplemento de RPG

Três dragões cartunescos com expressão amigável, ironizando a falta de ameaça nos dragões de Dragon Delves.
Quando o suplemento transforma dragões em mascotes sorridentes — e o medo vira piada.

Existe um tipo especial de tragédia que não faz barulho. Que não explode, não incendeia, não assusta criança. A Wizards of the Coast nos entrega Dragon Delves, um suplemento que mais parece uma exposição de aquarelas do que um chamado à aventura. Só decepciona. Essa análise de Dragon Delves é sobre isso: sobre uma antologia que prometeu dragões e entregou powerpoint, que jurou mundos em chamas e nos deu tabelas alinhadas, com cheiro de prazo editorial vencido. Não é um erro gritante, é um erro silencioso, desses que a Wizards comete sorrindo. Dragon Delves não é ruim porque é feio — é ruim porque não sente vergonha de ser vazio.

Resumo em Áudio Comentado:

Dragões Sem Heróis — Quando o Medo se Torna Produto e Não História

Há uma diferença tênue, porém irreversível, entre o que se pretende ser um grito e o que se torna apenas um suspiro amplificado por caixas de som. Dragon Delves, no fundo, é esse suspiro — soprado por uma Wizards of the Coast que, há muito tempo, esqueceu-se de que & Dragons não é apenas um aposto decorativo em seu título corporativo. Entre layouts coloridos e artes exuberantes que preenchem o vazio onde deveria haver narrativa, a antologia emerge não como um retorno triunfante dos dragões à sua glória apavorante, mas como mais um produto embalado para cumprir tabela no cronograma de lançamentos trimestrais. E, parafraseando o desdém que se acumula nos cantos poeirentos das prateleiras, talvez fosse mesmo mais honesto que abandonassem de vez o RPG e vendessem camisetas — como já têm feito, com orgulho e sem constrangimento.

Porque os dragões, afinal, são como deuses feridos: sua majestade não reside na quantidade de tesouros ilustrados em seus covis, mas no silêncio que precede seu rugido, na incerteza que antecede sua aparição. E é precisamente esse silêncio, essa pausa carregada de medo e expectativa, que Dragon Delves esqueceu de escrever, como falamos em um artigo meses atrás: a mudança que não muda.

É verdade: o suplemento se esforça em dizer que celebra os dragões, que reativa o “& Dragons“, que oferece uma tapeçaria de aventuras para Mestres novatos, jogadores solitários e grupos fragmentados pelo cotidiano digitalizado. A promessa editorial brilha em releases e entrevistas, cheias de palavras como “acessibilidade”, “flexibilidade” e “experiência compartilhada”. Mas quando abrimos o livro, não encontramos senão aventuras que poderiam ter sido geradas por inteligência artificial treinada em bases de dados de aventuras medianas da própria Wizards: estruturas modulares, desafios mecânicos calibrados para o risco mínimo, dragões reduzidos a NPCs com poderes e falas roteirizadas.

A Anatomia do Genérico

A estrutura da antologia é versátil, diriam alguns, mas seria mais honesto chamá-la de genérica. São dez aventuras, cada uma centrada em um dragão, cada uma ambientada em um cenário distinto — florestas corrompidas, desertos ancestrais, templos abandonados. Cenários que já conhecemos de cor, mesmo sem tê-los visitado ainda. A proposta de modularidade, que permitiria encaixar essas aventuras em campanhas maiores ou utilizá-las como one-shots, acaba sendo sua própria ruína narrativa: são histórias que não possuem raízes no mundo onde supostamente acontecem, como árvores de plástico plantadas em solo fértil.

Cada aventura vem com sua ficha técnica clara e concisa, otimizada para Mestres iniciantes: pontos de trama destacados, blocos de NPCs prontos para leitura rápida, ganchos de história alinhados como slides de PowerPoint. Não há espaço para o vazio criativo, aquele momento de hesitação onde o Mestre poderia criar algo próprio. Dragon Delves não confia no silêncio narrativo, apenas na voz alta das estatísticas e da praticidade.

E, no entanto, há quem diga que o livro tenta — veja bem, tenta — resgatar o senso de maravilhamento que os dragões evocavam nas edições antigas. Porque os dragões não são apenas monstros: são dilemas morais, são forças da natureza personificadas, são arquétipos de poder e corrupção. O suplemento tenta dar vida a essas figuras não apenas como inimigos a serem derrotados, mas como personagens com motivações e histórias. Alguns dragões são aliados relutantes, outros são vítimas de manipulações ou figuras tragicômicas presas em seus próprios dilemas éticos. Mas até isso soa como uma tentativa frustrada de preencher com psicologia de coach influencer o vazio deixado pela ausência de um verdadeiro medo.

Dragões que Não Assustam Nem Mordem

Em Dragon Delves, o dragão mais perigoso — um azul ancestral que deveria ser o ápice da ameaça — tem sua letalidade mitigada por um artefato conveniente, reduzindo sua ficha técnica a algo administrável para aventureiros de nível 12. Longe estão os dias em que um dragão era um evento narrativo em si mesmo, e não apenas um encontro balanceado para ser vencido dentro de duas ou três rodadas.

A ênfase nos dragões filhotes e jovens revela uma covardia editorial: é mais fácil criar encontros justos com criaturas fracas do que assumir o risco narrativo de colocar um dragão realmente perigoso no caminho dos jogadores. Onde está o senso de escala, de pavor, de insignificância perante uma criatura que habita lendas e canções antigas? Dragon Delves opta por miniaturas bem-pintadas e aventuras com finais felizes. Nenhuma criança perderia o sono depois de enfrentar esses dragões. Nenhum jogador hesitaria em brandir sua espada, sabendo que o dragão cairá sob o peso de suas estatísticas balanceadas.

O medo, que deveria ser a pedra angular dessas histórias, foi cuidadosamente removido para tornar a experiência acessível e divertida. E, ao fazer isso, os designers privaram os dragões de sua mordida. Restaram-lhes apenas as garras pintadas com esmalte e as asas de papel colorido.

A Estética Como Refúgio

Mas é preciso admitir: o livro é belo. A Wizards aprendeu, como todas as grandes corporações de entretenimento, que estética vende mais do que substância. Cada aventura vem acompanhada de ilustrações exuberantes, mapas detalhados e um design gráfico que transita entre o clássico e o moderno. É uma vitrine brilhante, capaz de desviar a atenção da superficialidade do conteúdo.

Há uma seção histórica que percorre a evolução visual dos dragões através das edições de D&D, uma espécie de tributo à própria marca. Como se a história estética pudesse preencher o vazio da história narrativa. É um álbum de figurinhas que, embora encantador, não conta nenhuma história nova. Ele apenas relembra, com nostalgia, o que o jogo já foi um dia.

E talvez seja isso o que Dragon Delves oferece de mais honesto: um museu de dragões que já foram temidos, agora reduzidos a peças de colecionador. Uma celebração do passado que, ironicamente, denuncia a incapacidade de criar um futuro digno desse legado.

Aventuras Para Jogadores, Não Para Personagens

Outra camada dessa superficialidade narrativa é o modo como as aventuras são pensadas para agradar jogadores casuais, não personagens em construção. Há um foco claro em experiências rápidas, fáceis de preparar, que possam preencher uma noite ociosa ou uma sessão incompleta —  fizemos uma análise da entrevista dos designers e dos problemas das aventuras solo. Aventuras que cabem no intervalo entre um compromisso e outro, e não que exijam dedicação emocional ou narrativa.

A Wizards defende isso como acessibilidade — e talvez seja mesmo. Mas, na prática, é também a aceitação resignada de que os tempos mudaram: jogadores não têm mais paciência para campanhas longas, para histórias que exigem envolvimento emocional, para dragões que exigem planejamento e medo. O RPG, então, cede lugar ao entretenimento rápido, e o dragão torna-se apenas mais um boss fight, tão memorável quanto qualquer outro inimigo de videogame.

Dragon Delves propõe ganchos narrativos vagos, como o “Patrono Misterioso” ou o “Ovo de Bronze”, que poderiam conectar as aventuras em uma campanha coerente. Mas tudo soa como improviso editorial: estruturas frágeis destinadas a justificar o marketing do livro como uma “possível campanha completa”, quando, na prática, são aventuras soltas amarradas por um fio narrativo desfiado.

O Que Poderia Ter Sido

Faltou um esforço editorial em transformar cada dragão em um eixo narrativo geográfico. Cada um poderia ter alterado mapas, climas, rotas comerciais, alianças políticas. Povos inteiros poderiam ter surgido como reações à sua existência — cultos devotos, caçadores de dragões, refugiados, contrabandistas que exploram as fronteiras proibidas. Mas nada disso está no texto. Quem quiser construir essas camadas precisará fazê-lo sozinho.

Também faltou profundidade nos próprios locais. Cavernas poderiam ter sido cidades abandonadas por civilizações dizimadas, desertos poderiam ter sido florestas queimadas por gerações de dragões vermelhos, e mares poderiam ter sido tornados inavegáveis por dragões negros que dominam os ventos e as marés. Mas, novamente, o livro se contenta com o básico: florestas com criaturas corrompidas, cavernas com monstros e tesouros genéricos.

Dragões Mortos Não Têm Eco — O Silêncio das Consequências em Dragon Delves

Há silêncios que são túmulos e silêncios que são vazios. Em Dragon Delves, quando o dragão cai morto sobre o mapa de batalha, não há ecos, nem túmulo, nem vazio: há apenas o som abafado de uma página virada. A Wizards of the Coast, com a serenidade de quem vende bonecos de ação numa feira escolar, empilha cadáveres de dragões sem perguntar quem chorará por eles. Porque, no fundo, não haverá luto: haverá apenas a próxima sessão, a próxima aventura, a próxima venda.

E, no entanto, o suplemento se esforça para fingir profundidade. James Wyatt declarou, com aquela retórica de designer bem-intencionado, que Dragon Delves foi concebido para preencher lacunas na experiência típica de jogo. É verdade: preenche a lacuna do Mestre ausente, do grupo fragmentado, da noite vazia em que alguém diz “vamos jogar alguma coisa”. Mas não preenche a lacuna do sentido. Não preenche o vazio onde deveria pulsar o legado dos dragões.

Algumas aventuras tentam — e falham — em deixar rastros. Em The Forbidden Vale, o dragão vermelho queima florestas e deixa comerciantes e druidas em disputa pela herança mágica do lugar. Em Before the Storm, uma tempestade ameaça destruir a vila costeira se as gemas elementais não forem recuperadas. Em Dragons of the Sandstone City, o fracasso dos heróis pode libertar um exército de dragões azuis ancestrais. Mas mesmo nesses casos, como apontou Mollie Russell, os ganchos narrativos soam preguiçosos, como se alguém tivesse lançado uma ideia ao vento e se contentado em assistir onde ela cairia.

Opiniões dos Lacaios

Russell, aliás, não poupa palavras: denuncia a superficialidade das resoluções, a ausência de razões claras para os personagens estarem ali, o peso morto de destinos entregues por NPCs que não sabem por que confiam em heróis recém-chegados. Ela lê Dragon Delves e encontra o que muitos leitores encontram: um catálogo modular, não uma saga.

J.R. Zambrano, com um tom mais benevolente, vê potencial onde Russell vê apatia. Para ele, o livro “reafirma a metade ‘& Dragons'” e, com esforço do Mestre, poderia ser executado como uma campanha unificada. Mas mesmo Zambrano admite que é um esforço que o livro não faz sozinho. É o Mestre quem terá de carregar nas costas a criação de um mundo onde dragões deixam cicatrizes, onde suas mortes geram novos cultos, onde suas ausências gritam mais do que suas presenças.

Ryan Doyle, por sua vez, reconhece a beleza estética e a diversidade das aventuras, mas confessa ter sentido falta de algo mais: faltou-lhe empolgação. Especialmente em aventuras como A Copper for a Song, onde a dragão Nakari simplesmente quer ser deixada em paz — um anticlímax narrativo que transforma um dragão em vizinha excêntrica, não em entidade mítica.

E assim seguimos, entre boas intenções e execuções mornas. Sim, há sugestões para consequências narrativas. O dragão bronzeado Skalanthas pode deixar de afundar navios se for traído; a bruxa Tio Nibblecheek pode reunir um coven para vingar seu covil destruído; o dragão dourado Briochebane pode ser libertado da manipulação e encontrar um novo propósito. Mas essas consequências são, na melhor das hipóteses, notas de rodapé. Não são eventos que moldam civilizações. São efeitos colaterais, não cataclismos.

O que deveria ser uma era de reinos caindo e se reerguendo sob a sombra dracônica torna-se, em Dragon Delves, um apanhado de dilemas pessoais e disputas paroquiais. Não há reinos devastados por guerras dracônicas. Não há mapas redesenhados pelas migrações forçadas após um dragão ancestral subjugar uma região. Não há novos cultos erguidos sobre a carcaça de um wyrm derrotado.

A Wizards, talvez cansada de criar mundos, prefere empacotar aventuras. Não há mal nisso, diria um cínico. Afinal, o mercado pede por isso: aventuras plug-and-play, que um Mestre cansado possa abrir às 19h e mestrar às 20h. Mas há algo de triste nessa resignação. Porque Dungeons & Dragons, apesar de todas as edições, erratas e patches digitais, nasceu para criar mundos, não sessões avulsas.

Talvez por isso, Dragon Delves evite deliberadamente consequências grandiosas (estou há 2 meses preparando um artigo sobre isso). Porque consequências exigem continuidade, e continuidade exige compromisso — algo que a Wizards, cada vez mais, evita prometer. O dragão morre, o covil é saqueado, a ficha é fechada e a próxima aventura espera. Como se dragões fossem descartáveis. Como se fossem chefes de fase, e não guardiões de eras.

É possível, claro, imaginar Mestres que preencham essas lacunas. Mestres que transformem Najkir em uma ilha politicamente dividida após a partida do dragão bronzeado. Mestres que façam de Respite uma vila traumatizada, buscando reconstrução após a tempestade. Mestres que escrevam, à margem do livro, as histórias que o suplemento se esqueceu de contar. Mas isso será obra dos Mestres, não da Wizards..

A Tragédia da Relevância

No contexto atual da D&D 2025, Dragon Delves representa um reflexo melancólico da Wizards of the Coast pós-5e original. A saída da equipe criativa que deu identidade à edição anterior deixou um vácuo que agora é preenchido por produtos seguros, esteticamente agradáveis e narrativamente inofensivos.

É difícil não ver nesse suplemento a confirmação de uma Wizards que trocou o RPG pelo produto, a história pela coleção, a mesa de jogo pelo catálogo online. Não há uma única criatura nova, um item mágico exclusivo, uma magia inédita. Nem mesmo os dragões ganharam novos blocos de estatísticas. Tudo já estava no Livro dos Monstros e em Tesouro dos Dragões de Fizban. Dragon Delves, no fundo, não cria: apenas reorganiza.

Poderia, talvez, ter sido lançado como material gratuito no D&D Beyond. Mas não: é um produto físico, destinado a preencher prateleiras e agendas de lançamentos. Um livro que custa como um clássico, mas que entrega como uma DLC simples disfarçada.

E, no entanto, ainda resta uma dúvida amarga. Se os dragões não moldam o mundo, quem molda? Se as aventuras não deixam marcas, para quê foram escritas? Se a Wizards não confia mais em sua própria capacidade de criar mundos vivos, por que ainda publica livros? Talvez porque precise preencher o calendário comercial. Talvez porque precise manter a máquina girando até o próximo bundle digital. Talvez porque, como já dissemos, seja mais fácil — e mais lucrativo — vender camisetas.

No final, Dragon Delves não fracassa por falta de boas ideias. Fracassa por não ousar segui-las até o fim. Por parar no meio do rugido, temendo acordar um público que prefere dormir tranquilo. Por não deixar o dragão escapar do covil e incendiar o mundo. Porque, no fundo, ninguém queria apagar o incêndio depois.

E assim o dragão morre. Sem testemunhas. Sem canções. Sem luto. Apenas o silêncio opressor de um mundo que não sabe — e talvez não queira saber — que perdeu sua maior lenda.

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