Jess Lanzillo, uma das figuras mais influentes nos bastidores da Wizards of the Coast nos últimos anos, anunciou sua saída da empresa no último fim de semana. A informação veio através de um post bem-humorado no LinkedIn, que começa com a frase: “After eight years at Wizards of the Coast, I have made the totally reasonable decision to leave a job where I got paid to argue about whether fictional lizard people can have tails. (Of course they can.)”
“Depois de oito anos na Wizards of the Coast, tomei a totalmente razoável decisão de deixar um emprego onde eu era paga para discutir se homens-lagarto fictícios podem ou não ter caudas. (É claro que podem.)”
A frase pode soar cômica, mas não esconde a seriedade da mudança: Lanzillo deixa para trás não apenas o cargo de Vice-Presidente da franquia Dungeons & Dragons, mas um legado de transformações em algumas das propriedades intelectuais mais valiosas da Hasbro. Em um período marcado por reestruturações internas, polêmicas de licenciamento e saídas emblemáticas (como Jeremy Crawford e Chris Perkins), sua partida deixa um ponto de interrogação incômodo: para onde vai a Wizards agora?
O Currículo de Uma “Feiticeira Profissional de Bairro”
O título que ela deixou no LinkedIn “Just Your Friendly Neighborhood Professional Wizard” (Apenas sua Simpática Feiticeira Profissional da Vila) pode parecer brincadeira, mas Jess Lanzillo levou magia a sério. Desde 2017, ela trabalhou com Magic: The Gathering, onde ocupou cargos de Worldbuilding Design Manager, Creative Director e, eventualmente, VP de Criação. Essa escalada culminou em sua transição para o cargo de Chief of Staff em 2022 e, por fim, VP de Franquia e Produto para Dungeons & Dragons em fevereiro de 2024.
Não é pouca coisa: ela esteve diretamente envolvida na reestruturação narrativa e visual do Magic, na coordenação de equipes interdisciplinares, e depois na liderança global da franquia D&D. É preciso lembrar que esse período coincidiu com a revisão da 5ª edição de D&D, o lançamento da SRD 5.2 em Creative Commons, e a implosão da reputação da marca com o escândalo da OGL 1.1. Jess estava no centro do furacão. E não tremeu.
“Can You Add More Glowies? (Você Pode Colocar mais Brilhinhos?)”
O tom informal do seu anúncio não é irrelevante. Revela uma liderança que não se levava tão a sério a ponto de esquecer o que faz D&D ser D&D: o lúdico. Lanzillo fala em “glowies”, ou “brilhinhos” como metáfora para a demanda por impacto visual, mas também para aquilo que transforma um sistema em experiência. A responsabilidade criativa de alinhar narrativas, regras e produtos a uma comunidade global nunca foi tão difícil. E ela o fez com ironia, mas também com firmeza.
Seu legado inclui a estruturação de equipes mais diversas, o fortalecimento de canais com a comunidade, e uma visão estratégica que valorizou tanto o digital quanto o legado editorial. Em um mercado em que marcas viram fé, Jess Lanzillo atuou como sumo-sacerdotisa e iconoclasta ao mesmo tempo.
As Peças Que Caem no Tabuleiro
Sua saída não acontece no vácuo. Em menos de um ano, a equipe de design de D&D perdeu também Jeremy Crawford, arquiteto mecânico da 5e e voz oficial das regras; e Chris Perkins, guardião da lore e curador das aventuras oficiais. A simultaneidade dessas partidas pode ser coincidência. Mas também pode não ser.
A Wizards já abriu vagas para cargos sênior de desenvolvimento, e a ausência de nomes conhecidos no painel da D&D Direct 2025 apenas reforça a ideia de que a editora está passando por uma metamorfose forçada. O novo rumo parece ser menos sobre criar regras e mais sobre criar produtos.
Jess, o Capitalismo e os Dragões
É emblemático que Lanzillo brinque sobre “o capitalismo tardio ter alcançado seu grau máximo de absurdidade” ao lhe conceder o título de VP de Dungeons & Dragons. A piada é uma crítica velada à mercantilização extrema do hobby, mas também uma aceitação do jogo: ela soube jogar.
Sob sua gestão, D&D se reposicionou como marca de entretenimento transmídia, com a Hasbro apostando em jogos digitais, NFTs (felizmente abortados), integração com plataformas de VTT e um foco renovado em produtos para novos jogadores. Se essa estratégia funcionou, ainda é cedo para dizer. Mas ela deixou o tabuleiro preparado.
Para Onde Vai o D&D Agora?
A saída de Lanzillo, somada à de Crawford e Perkins, deixa D&D em um ponto de inflexão. O sistema revisado já está nas prateleiras. A SRD 5.2 é de todos. A marca, porém, continua sendo da Hasbro, e sua direção está mais corporativa do que nunca. O risco? Que D&D se torne genérico, vazio de vozes autênticas. Que a língua dos dragões passe a ser escrita apenas por algoritmos de marketing.
Em contrapartida, o vácuo criativo pode abrir espaço para outras vozes. A Free League, Chaosium, o renascimento da White Wolf (como mostramos neste artigo), e o fenômeno Crônicas de Midgard mostram que o público não se contenta mais com livros bonitos: querem visão. Jess Lanzillo tinha uma.
O Próximo Capítulo de Jess
Jess ainda não revelou seus próximos passos, mas deixa pistas: fala em “escolher seu próprio plot twist”. E quem já acompanhou sua trajetória sabe que ela costuma escolher com ousadia. Não seria surpresa vê-la liderando um novo estúdio, talvez uma editora indie, talvez algo fora do RPG. Ou quem sabe fundando um projeto autoral com foco em representação e design inclusivo. Alguém duvida que ela tenha brilhinhos o suficiente para isso?