Há quem veja o RPG como passatempo, como jogo de dados, como teatro improvisado de porão. Outros — ainda apegados a um certo preconceito analógico — o reduzem a fuga, delírio, perda de tempo. Para Wilsius Norte, no entanto, o RPG é uma ferramenta clínica, terapêutica, uma lente simbólica, um mapa de travessia psíquica, que une RPG e Psicologia.
Este texto surgiu de uma entrevista gravada disponibilizada neste link no Youtube.
Já falamos sobre RPG e seus benefícios para saúde mental. Agora, vamos falar com um psicólogo com mais de duas décadas de prática, Wilsius não envereda por manuais com linguagem industrial, tampouco se rende a terapias enlatadas. Em vez disso, constrói com seus pacientes narrativas personalizadas onde o sintoma vira vilão, a sessão vira jornada e a metáfora se torna o fio de Ariadne. Sua proposta? Uma clínica simbólica — não para oferecer diagnósticos, mas para provocar transformações narrativas que se aninham no inconsciente.
Em sua prática, dados poliédricos substituem questionários padronizados, fichas de personagem revelam dilemas arquetípicos e conflitos emocionais são reelaborados como enredos épicos. O consultório se transmuta em taberna, templo, arena, santuário da imaginação — lugar onde a criança ferida encontra, enfim, seu herói interior.
Mas não se engane: essa abordagem não é improviso de palco amador. Wilsius evoca Jung, bebe em Campbell, dialoga com Winnicott e reverencia os mitos como tecnologia da alma. Para ele, o RPG é mais que jogo: é um ritual narrativo que permite simbolizar a dor e construir sentido diante do caos.
Chamado por alguns de “Cartógrafo de Sombras”, Wilsius enxerga no lúdico um modo de reelaborar a existência. Numa era saturada de produtividade e diagnósticos, ele oferece o inesperado: um convite à imaginação como ferramenta de cura.
A seguir, transcrevemos — com edição leve para fluidez — nossa conversa com Wilsius Norte. O tom é íntimo, mas o conteúdo é vasto: entre legos, dragões, metáforas e silêncios, ele desenha uma alternativa radical à prática clínica tradicional.
Agora, com a mesa devidamente apresentada, os dados brilhando sob a luz oblíqua do estúdio e nosso convidado acomodado diante dos microfones, é hora de entender como a fantasia e a narrativa entraram na vida dele.
A infância do dragão: quando o RPG entra em cena
Wilsius, quero usar uma magia de cronomancia e te teleportar mentalmente um pouco para trás na linha do tempo. Todo mundo que joga RPG tem aquela lembrança bem específica: talvez uma mesa improvisada na cozinha, um livro emprestado, um personagem criado meio na correria. Como foi o seu primeiro contato com o RPG? Onde você estava, quem eram as pessoas à sua volta e o que exatamente te atraiu naquela primeira experiência?
E ainda nessa linha: você já conseguia perceber, naquele momento inicial, que o RPG poderia vir a ser uma ferramenta para algo mais do que entretenimento? Houve um instante de epifania ou essa percepção veio muito depois?
“A alma já estava convertida na primeira semana”: o início da jornada lúdica de Wilsius Norte
Wilsius Norte não começou sua trajetória profissional nos consultórios nem nas salas de supervisão clínica. Começou onde muitos futuros mestres se formam: no fundo de uma caixa de papelão colorida, com cheiro de tinta e promessas de mundos.
“Eu devia ter uns 14, 15 anos”, conta. “Era perto do Natal, e fui com meus pais comprar o meu presente. Entrei na loja e bati o olho naquela caixa preta, com um dragão vermelho estampado. Era o D&D da Grow. Eu não fazia ideia do que era aquilo, mas olhei e disse: eu quero isso.”
A caixa veio para casa. Dentro, um amontoado de tabelas, dados e manuais que mal faziam sentido à primeira vista. “Abri, li, não entendi muita coisa. Mas o que entendi foi suficiente pra dizer: vamos tentar jogar isso aqui.”
Reuniu os amigos, improvisou uma sessão, e — como tantos antes dele — caiu de cabeça. “A alma já estava convertida na primeira semana”, diz, rindo. “Coincidiu com um período de férias, então virou vício mesmo.” Vieram outros jogos, como HeroQuest, e com eles nasceu o gosto pela função de mestre. “Fui sentindo, fui criando, mas ainda não fazia ideia do que o futuro tinha guardado.”
Não demorou para a coleção crescer. Vieram as xerox clandestinas do GURPS segunda edição — “aquele tomo maravilhoso” — e o mergulho nas infinitas possibilidades dos sistemas genéricos. “Para quem é criativo, o genérico é perfeito. Porque tudo é possível. E quando tudo é possível, aí você enlouquece.”
Wilsius ri ao lembrar da própria empolgação juvenil. “Acho que a partir de agora a audiência vai cair, e eu vou ser cancelado por causa do GURPS”, brinca. Mas era ali, no caos criativo da personalização de regras, que algo começava a se formar.
Vieram ainda os mundos sombrios de Vampiro: a Máscara, os paradigmas fragmentados de Mago: a Ascensão. “Quando cheguei no Mago, adorei a complexidade. A narrativa, a estrutura… tudo me fascinava. Mas quanto mais eu jogava, mais eu percebia: o que eu amava de verdade não era um sistema específico. Era o RPG em si.”
“O que eu mais gostava no RPG não era o sistema. Era o RPG.”
Essa distinção — entre ferramenta e essência — talvez tenha sido a fagulha inaugural. Não se tratava apenas de rolar dados ou seguir manuais. Tratava-se de criar, experimentar, simbolizar.
E embora ele ainda não tivesse clareza disso, já se desenhava ali a ponte entre o jogo e a escuta clínica. Entre o mestre que propõe jornadas e o terapeuta que escuta mitos pessoais.
Quando o dado caiu na sessão: o RPG como recurso clínico
De Jogador a Psicólogo: De onde surgiu isso?
Hoje você une psicologia analítica, RPG, Lego, mitos e metáforas numa clínica que chama de “cartografia das sombras” em seu site. Mas, quando você começou a estudar psicologia, já tinha claro que poderia utilizar o RPG como ferramenta terapêutica ou foi algo que emergiu naturalmente ao longo da sua carreira?
“Isso é Jung. Isso é imaginação ativa. Isso aqui funciona na clínica.”
Quando se formou em psicologia, Wilsius Norte não tinha ainda uma teoria pronta. Tinha, sim, um acúmulo de vivências — e uma biblioteca mental de mitos, fichas e dados rolando há pelo menos quinze anos. “Eu tenho 44 anos. Jogo RPG desde os 14, 15. São 30 anos jogando. Mas foi só depois de uns 15, 20 anos de prática que comecei a perceber que havia algo ali mais profundo. Algo que poderia ser trazido pra clínica.”
Foi quando releu o trabalho de Jacob Levy Moreno, o psiquiatra romeno radicado nos Estados Unidos que fundou o psicodrama, uma das primeiras abordagens terapêuticas a utilizar dramatizações como ferramenta clínica. Moreno (1889–1974) é autor de obras como Who Shall Survive? e Psychodrama, onde apresenta o conceito de role playing como forma de explorar espontaneidade, criatividade e cura emocional. “O Moreno não é alguém que a gente associa diretamente ao RPG. Mas, pra mim, ele é como o avô do que a gente faz quando usa RPG na clínica.”
“Moreno trouxe para a ciência o potencial da interpretação de papéis dentro da clínica viva.”
Wilsius diz que foi justamente essa noção — de clínica viva, baseada na espontaneidade — que acendeu o alerta em sua cabeça. Uma ponte possível entre RPG e psicologia deixava de ser devaneio e ganhava chão.
Mas o verdadeiro clique veio de forma inesperada, durante a leitura de um jogo brasileiro.
“Eu li Meu Brinquedo Preferido e pensei: isso é o arquétipo da criança.”
O jogo em questão era Meu Brinquedo Preferido, escrito por Eduardo Caetano, que pode ser baixado gratuitamente aqui, autor mineiro conhecido por obras narrativas como Violentina. No livro, o jogador assume o papel de uma criança e seus brinquedos, embarcando em aventuras que mesclam inocência, fantasia e fragilidade. “Eu tava lendo e pensei: cara, isso é Jung. Isso é o arquétipo da criança. Isso é imaginação ativa. Isso é função transcendente.”
As referências que Wilsius menciona são pilares da psicologia analítica, desenvolvida por Carl Gustav Jung (1875–1961), que propunha que símbolos e arquétipos formam a linguagem natural do inconsciente. Imaginação Ativa é um método terapêutico jungiano que estimula a visualização consciente de conteúdos inconscientes; função transcendente é o nome dado à integração entre opostos psíquicos, mediada por símbolos.
“A clínica tá viva. É isso aqui.”
Empolgado com a conexão, Wilsius escreveu ao próprio autor do jogo. “Mandei um e-mail pro Eduardo Caetano e falei: cara, eu vou usar isso na clínica. Posso?” Segundo ele, Caetano respondeu com liberdade e confiança: “Se você se garante, vai lá. O psicólogo é você.”
A partir daí, Wilsius deixou de ver o RPG apenas como um recurso criativo. Começou a buscar sustentação teórica nos próprios autores da psicologia. “Fui procurar dentro da literatura da psicologia analítica, dentro do Jung, dentro do Moreno, a base que sustentava o uso disso na clínica.”
Mas ele faz uma distinção que considera crucial:
“Eu não faço RPG-terapia. Eu uso o RPG na terapia. E isso faz toda a diferença.”
Na concepção de Wilsius, há uma diferença clara entre usar o RPG como clínica e usar o RPG na clínica. “Quando o RPG é a terapia, ele se torna o método central. Mas, no meu caso, o RPG é uma ferramenta. Pode ser útil — ou não. Vai depender do momento, do caso, da sensibilidade do terapeuta.”
Essa postura flexível, ancorada em escuta e adaptação, é parte da filosofia que batizou de cartografia das sombras: um mapeamento simbólico das dores, potências e mitos que habitam cada paciente.
“A sensibilidade do terapeuta é quem vai determinar se o RPG é indicado ou não. Não é sobre encaixar todo mundo no jogo. É sobre abrir espaço para que o jogo emerja — se for o caso.”
RPG como Terapia: O que é exatamente isso?
Tem muita gente que joga RPG para fugir da realidade, para relaxar, mas você usa justamente para confrontar realidades pessoais. Explica pra gente, de uma forma simples, como funciona isso na prática. Por exemplo, um paciente chega ao seu consultório — qual é exatamente o passo-a-passo desse processo de levar um conflito real para um cenário fictício? Quem escolhe os personagens? Quem define as missões simbólicas?
“A gente não fala a mudança. A gente vive a mudança.”
Ao ser questionado sobre como se dá o uso prático do RPG em sua clínica, Wilsius Norte ergue uma sobrancelha simbólica. Para ele, o processo não começa no dado — começa na escuta. “Primeiro, o paciente chega. Começamos a terapia como qualquer outra jornada clínica. Só que o meu normal é um normal diferente.”
O “normal diferente” de que fala se refere ao tom da escuta, à suspensão de formalidades, à convocação de autenticidade. “A primeira coisa que digo é: esqueça o politicamente correto. Seja você. Esse aqui é um espaço seguro.”
As sessões, no início, seguem o protocolo tradicional. Conversa, escuta, análise. Mas nem todo paciente consegue — ou quer — verbalizar. “Às vezes, o sujeito está cansado de falar. Ou não consegue colocar em palavras o que sente. E aí entra o RPG.”
Foi assim com um paciente específico, cuja história se tornou paradigmática. “Ele tinha um vitimismo muito forte, um ego muito fragilizado. Era incapaz de se ver como protagonista em qualquer área da vida: pessoal, profissional, relacional. Entendia tudo, racionalmente. Sabia das teorias. Mas não conseguia viver o que sabia.”
“Ele entendia tudo. Mas não conseguia viver.”
Wilsius propôs um experimento: jogar RPG. O paciente se assustou — “RPG? Aquele negócio online?” — mas topou. E foi aí que, para Wilsius, a mágica da clínica simbólica começou a operar.
“Falar sobre o que a gente quer mudar não adianta. A gente precisa viver a mudança primeiro. Provar dela. Simbolicamente.”
A referência aqui é direta a Carl Gustav Jung e sua noção de função transcendente — o processo psíquico de integração entre opostos (consciente e inconsciente), que se dá não pela lógica linear, mas pela vivência simbólica. “É isso que o Jung fala: você sai do conflito, do que é conhecido versus desconhecido, e integra. Vive algo no jogo, e leva isso pra vida real.”
Com o consentimento do paciente, Wilsius escolheu o Alien RPG (Free League Publishing) — um jogo narrativo de horror e sobrevivência ambientado no universo da franquia Alien. Não era um universo familiar ao paciente, nem seu gênero favorito. Mas o desconforto era parte da proposta. “Ele foi atrás. Assistiu aos filmes. Mergulhou. E aí trouxe à construção do personagem todo o protagonismo que não exercia na vida real.”
“Antes mesmo da máquina ligar, a transformação já tinha começado.”
Segundo Wilsius, a criação do personagem é um dos momentos terapêuticos mais intensos do processo. “É ali que a gente trabalha a persona — no sentido junguiano mesmo. Todas as máscaras sociais que a gente construiu ao longo da vida ganham forma no personagem.”
O paciente construiu um personagem que, a princípio, parecia genérico: um tipo durão. Mas logo adicionou detalhes: inspirou-se no Dutch (personagem de Arnold Schwarzenegger em Predator), incluiu charuto, trilha sonora militar e outros clichês que, sob a ótica clínica, se tornaram valiosos. “Esses clichês eram pistas. Aquilo era o herói que ele queria ser. Aquilo era o ‘eu’ ideal dele. Através da ficção, ele estava ensaiando o que a vida não lhe permitia viver.”
A construção narrativa do personagem, portanto, não é aleatória: é uma dramatização da psique. Uma encenação simbólica que permite ao paciente experimentar, com segurança, novos papéis e posturas.
“Não tem duas mesas iguais. Cada jogo é centrado na dor singular do paciente.”
A escolha do sistema, da ambientação e até das mecânicas do jogo são subordinadas à escuta clínica. “Tem que ser centrado naquela dor. Naquele universo particular. É um RPG feito sob medida.”
“Se não trouxer as reflexões, não tem jogo.”
Para Wilsius, jogar RPG em sessão não é um intervalo lúdico, nem uma distração terapêutica. É parte de um processo simbólico com começo, meio e fim — e com objetivos muito claros. “O RPG na terapia precisa ter um propósito. Não é só entretenimento. Ele entretém porque é divertido, claro. Mas ele precisa estar a serviço da escuta. Precisa ter função clínica.”
“O RPG precisa ter início, meio e fim. Você tem que saber por que está usando isso com aquele paciente.”
Depois da construção do personagem — que, como ele afirma, já opera transformações antes mesmo de qualquer dado rolar —, vem a criação do mito, da história, do desenrolar simbólico. É nesse ponto que o jogo se converte em rito narrativo. “Ali, o símbolo acontece.”
Na linguagem junguiana, o símbolo é aquilo que emerge entre o conhecido e o desconhecido — uma imagem viva que carrega tensão e, ao mesmo tempo, sentido. Eu, Faren, inclusive, mencionei estar lendo no momento da entrevista o livro Símbolos da Transformação, de Carl Gustav Jung, uma de suas obras mais densas e estruturantes, onde o autor investiga os processos simbólicos ligados ao inconsciente coletivo e à formação do ego.
“O símbolo é a tensão entre o que é conhecido e o que não é conhecido.”
É justamente essa tensão que o RPG permite dramatizar de forma segura: o paciente não apenas fala sobre um dilema — ele vive esse dilema, simbolicamente, na pele de outro. E isso, segundo ele, tem implicações clínicas profundas.
Cada sessão de RPG, portanto, termina com uma pausa. Um tempo de escuta e integração. “A gente para ao fim da sessão e traz tudo que foi vivido para reflexão. Aí entram os exercícios simbólicos, a psicoeducação, os retornos.”
Mas o compromisso não termina na sessão.
“Se na próxima sessão o paciente não me trouxer as reflexões, não tem jogo.”
Essa regra pode parecer dura — mas é parte do método. O RPG, para ser terapêutico, precisa de engajamento. De implicação subjetiva. “Não é só jogar. É refletir. É integrar. O RPG funciona como laboratório, mas o paciente precisa levar as descobertas para a vida real.”
É por isso que Wilsius insiste: não há fórmulas. Não há um sistema “ideal para ansiedade”, ou um jogo “universal para autoestima”. Tudo depende do paciente. Da dor. Do momento. E, sobretudo, da escuta.
“Cada mesa é única. Cada personagem é uma cartografia do invisível.”
E como funciona o tempo das Sessões?
Uma dúvida que me surgiu é que normalmente as sessões dos psicólogos duram em média 50 minutos, e uma sessão de RPG mínima, para conseguir evoluir alguma coisa na história, é no mínimo duas horas a três horas. Como funciona essa dinâmica de chegar, fazer toda a parte clínica, chegar no RPG, para retornar à parte clínica, dentro desse prazo?
“A construção do personagem é uma sessão só. E já começa aí a transformação.”
Wilsius responde: Essa pergunta é ótima, porque toca num ponto essencial da prática: o tempo clínico não é o mesmo do tempo de mesa. A estrutura tradicional da psicoterapia — sessões de 50 minutos — impõe um desafio logístico quando se tenta integrar RPG. Mas não é impossível. Exige planejamento.
“Aqui a gente parte para a construção do mito dentro do processo daquele paciente”, explica Wilsius, que utiliza o termo “mito” à maneira junguiana: como narrativa simbólica que dá forma à psique. A chave, segundo ele, está em saber modular o uso da ferramenta. “Vai da habilidade do psico(logo). É ele quem precisa desenvolver, com a experiência, um bom cronograma.”
“A construção do personagem é uma sessão só. Sentamos, e ali levamos os 50 minutos — às vezes uma hora — só para isso.”
O objetivo dessa sessão inaugural com o RPG não é jogar de imediato, mas preparar o terreno. “Você constrói o personagem, explica o universo e apresenta a mecânica do sistema.” Cada sistema de RPG tem seu próprio conjunto de regras, e mesmo que elas não sejam aplicadas integralmente durante o jogo terapêutico, a presença da mecânica carrega um valor simbólico.
“Às vezes a gente precisa rolar dados”, diz. “Porque na vida real tem situações que estão fora do seu controle.” Neste momento, a entrevista foi interrompida por um comentário meu — “O maior aprendizado que um adulto pode ter é que você não tem controle de quase nada.” Wilsius concorda com ênfase: “Exatamente. Você não tem controle.”
“O dado encena aquilo que a vida faz de forma mais crua: o imprevisível.”
Com isso, o tempo da sessão passa a comportar o RPG não como uma campanha, mas como um ritual episódico — que começa, se desenvolve e se suspende em pequenos ciclos narrativos. “A gente avisa previamente: olha, na próxima sessão vamos iniciar o jogo. Consegue chegar no horário direitinho? Porque o jogo vai ocupar entre 50 minutos e uma hora.”
A estrutura segue um ritmo próprio: entrada no personagem, exploração simbólica, encerramento com possíveis pontuações. “Toda sessão tem pontuações? Não. Algumas têm, outras não. Às vezes a gente vivenciou pouca coisa do universo simbólico ainda, e então não é o momento de refletir.” Essas reflexões, que podem ser exercícios escritos, propostas simbólicas ou pequenas tarefas, funcionam como pontes entre o jogo e a vida.
“Se não há vivência suficiente, eu espero. Não envio ainda. Vou acumulando para trabalhar com ele na hora certa.”
Cada sessão, portanto, é um passo — que pode ou não conter RPG. Pode ou não conter análise. O que não muda é a escuta atenta e a curadoria simbólica.
O Caso Sir Glicordz: RPG, Diabetes e Transformação Simbólica
Vamos falar agora especificamente sobre o caso que te trouxe até aqui, Sir Glicordz. No seu post você narra um paciente que disse: “fui condenado a ser diabético”. Você pegou essa frase pesada e transformou em uma campanha de RPG, trazendo personagens como o Desregulador Sombrio e Lady Sui Linn. Isso é claramente uma utilização muito podero sa de símbolos e arquétipos, algo que Jung provavelmente aprovaria com entusiasmo.
Como você montou essa narrativa específica? Como foi o processo de escolher esses símbolos — o Reino Doce, os Carboidrátikos, a Torre do Glicômetro? Você planejou tudo sozinho ou houve uma construção colaborativa com o paciente?
Conta também qual foi o impacto na prática clínica dessa abordagem. O paciente relatou diretamente como essa experiência mudou a percepção que ele tinha da doença?
“Eu fui traído pelo meu corpo. Estou condenado a ser diabético.”
A história de Sir Glicordz não começa como fantasia. Começa como luto. Um luto não reconhecido, cravado em carne viva. “Esse paciente já chegou desacreditado do processo. Eu era o quarto psicólogo dele em dois anos.” A escuta era uma repetição cansada. A dor, um roteiro decorado.
“Uma das primeiras frases que ele disse foi: ‘Eu vim pra cumprir tabela. Não vai dar em nada como os outros.’”
Na visão do paciente, a psicologia era um teatro esvaziado de sentido. “Você vai me mandar falar aquelas baboseiras de autocuidado? Eu fui traído pelo meu corpo. Estou condenado. Condenado a ser diabético.”
Wilsius escutou — sem interromper. O paciente carregava um amargor acumulado que contaminava tudo: a relação com a esposa, o ambiente de trabalho, a própria imagem. “Era um luto profundo. Ele não via nada de bom na vida. Tinha perdido o prazer de criar — e ele era designer. Alguém que antes via beleza em tudo. E agora, nada.”
As sessões iniciais foram pesadas, defensivas, provocativas. “Você não vai me perguntar se eu olhei a glicose hoje?”, ironizava. Até que, um dia, depois de uma briga com a esposa, ele entrou na sala de forma explosiva. “Bateu na mesa, xingou. Disse: ‘Fui traído. Sou escravo disso. Estou tomando essa droga dessa insulina. Mas não vou ver nada de positivo nisso.’”
Wilsius viu uma fresta. “Eu disse: cara, você é um artista. Você vê beleza em tudo. Ainda há beleza. Até aqui.” O paciente reagiu com sarcasmo. “Beleza onde, seu maluco?”
Foi o momento da virada. O psicólogo propôs um pacto: “Cala um pouco essa amargura. Vamos tentar um caminho diferente. Se topar, ótimo. Se não, seguimos o protocolo. Mas tenta.”
“O que a gente vai fazer? Vai me botar pra desenhar mandala? Fazer hipnose? Tudo isso eu já fiz.”
A resposta foi inesperada: “A gente vai jogar RPG.”
O paciente arregalou os olhos. “RPG? Cara, faz muito tempo que não jogo. Mas jogar RPG na terapia?” Wilsius confirmou. “Tipo Dungeons & Dragons?”, ele perguntou. “Tipo essas coisas”, respondeu Wilsius. Foi a primeira vez que o paciente riu em sessão.
“Eu disse que usaríamos o sistema de Hora de Aventura. E ele: ‘Aquele desenho meio tosco?’ Justamente. Porque você precisa ir pro Reino Doce. Porque tua vida tá lá.”
A escolha de Hora de Aventura RPG não foi aleatória. A ambientação absurda, lúdica e simbólica do universo criado por Pendleton Ward, adaptado para RPG em mecânicas leves, permite explorar arquétipos com doçura e exagero — sem a dureza de um simulador clínico. “Era onde ele podia colocar toda sua amargura pra fora. E recuperar a doçura. A doçura por ele mesmo.”
O personagem nasceu aos trancos. Primeiro, o paciente queria algo amargo: “Um filho bastardo de limão”. Depois, pensou em alguém que “não sentia gosto nenhum”. Cogitou fazer uma personagem feminina. Por fim, faltando cinco minutos para terminar a sessão, Sir Glicordz emergiu — uma espécie de cavaleiro melancólico em um mundo açucarado.
Mas não veio sozinho.
“Ele construiu o Glicordz e, ao mesmo tempo, construiu a sombra: o Desregulador Sombrio.”
Esse antagonista seguia o personagem em cada canto do Reino Doce. Era a personificação da doença, da dor, da perda de controle. Era, como Wilsius resume, “a própria sombra dele”.
A narrativa começou a se formar: Carboidrátikos, Lady Sui Linn (alusão direta à insulina que eu, Faren, amei), a Torre do Glicômetro, o Pântano do Pâncreas Partilhado — e, sobretudo, uma missão clara: recuperar o protagonismo, aceitar sem se render, resgatar o prazer de criar.
“O objetivo era integrar essa doença como parte. Não como limitação da própria vida.”
A campanha foi desenhada para trabalhar esse luto — não como derrota, mas como rito de passagem. Para reativar no paciente o artista, o herói, o narrador. E para isso, o RPG não foi fuga. Foi enfrentamento.
“A missão era reaprender a criar. A jogar com o que restou.”
Com o personagem pronto — e sua sombra revelada —, o jogo teve início. Mas era mais do que uma partida: era um ritual narrativo cuidadosamente arquitetado para traduzir dor em símbolo, doença em missão. A campanha tinha objetivos clínicos claros.
“Era trabalhar o luto dessa perda de imagem. Reconstruir o senso de protagonismo. Aceitar sem passividade. Integrar a doença como parte — não como limitação. Reativar o processo criativo. O prazer de criar. Tudo isso era objetivo dentro do processo terapêutico com ele.”
“A missão era integrar. Não lutar contra a doença, mas parar de lutar com o espelho.”
Na narrativa, Sir Glicordz precisava atravessar o Reino Doce e enfrentar o Desregulador Sombrio, um inimigo que não podia ser derrotado com força bruta — apenas com simbolismo, escolhas e afeto. A cada sessão, o paciente não apenas enfrentava desafios externos: era convidado a refletir sobre o que cada obstáculo representava. A Torre do Glicômetro era um símbolo claro do controle — mas também da obsessão. Lady Sui Linn, uma NPC ambígua, oscilava entre aliada e lembrete da dependência. Tudo era espelho.
O sistema leve de Hora de Aventura RPG — baseado em rolamentos simples e ênfase em interpretação — permitia liberdade narrativa, espaço simbólico e fluidez. Não havia simulações biomédicas, nem mecânicas clínicas. Havia metáforas.
Mas o mais poderoso foi o reencontro do paciente com a criação. Designer por formação, ele havia se afastado da estética e da invenção. “Mas ali, jogando, ele começou a criar de novo. Criou visuais, desenhou mapas, mandou ideias. Começou a experimentar de novo a possibilidade de se expressar.”
“Reaprender a criar foi, talvez, a maior cura possível naquele momento.”
Wilsius não afirma que o RPG curou o paciente. Nem que substitui qualquer protocolo clínico. Ele reforça o que já dissera antes: o RPG, em sua clínica, não é uma terapia alternativa — é uma ferramenta simbólica. Uma ponte. Um artifício.
No caso de Sir Glicordz, essa ponte se revelou fértil. O paciente começou a transformar seu olhar. Relatou mudanças concretas: mais leveza nas conversas com a esposa, maior disciplina nas rotinas de monitoramento, menos autossabotagem, mais clareza sobre seus limites e possibilidades.
“O símbolo que ele criou — Glicordz — virou um espelho viável. Não perfeito. Mas possível.”
Ao final da campanha, o paciente pediu para registrar a história — não como caso clínico, mas como conto. Um gesto que resume, talvez, o que Wilsius chama de cartografia das sombras: não apagar a dor, mas redesenhá-la com os traços da fantasia. Torná-la habitável.
RPG, Família e Comunicação Não-Violenta
Você atua também com terapia familiar, o que é sempre muito desafiador. No texto que você escreveu, afirma que coloca famílias num “ringue”, não para lutar, mas para se escutar realmente. E usa o RPG nesse contexto familiar também, certo?
Explica para nós como o RPG pode ajudar famílias a saírem desse “Jogo de Culpados” para um diálogo real. Como funciona isso na prática? O que acontece em uma sessão familiar usando RPG? Como os conflitos do cotidiano são convertidos em personagens, monstros ou missões simbólicas?
Você percebe uma resistência maior das famílias a entrarem nesse método do que pacientes individuais? Se sim, como você costuma lidar com isso? E para quem está ouvindo essa entrevista e sofre com problemas familiares, como perceber que o RPG pode realmente ajudar nessa mudança?
“Eles vestiram a própria sombra.”
Wilsius responde com a mesma sinceridade bruta que aplica nos atendimentos: “Cara, essa família que eu atendi já vinha comigo há uns dois, três meses. Mas era tudo travado. Nada fluía.” E, na descrição que se segue, o cenário parece um palco de Beckett — onde o silêncio pesa mais que qualquer palavra.
“O pai era o provedor clássico. Falava por todos. A mãe ficava em silêncio, mas atenta a tudo. O filho, só no celular. A filha, bufando. O pai falava, ela virava o rosto. O pai falava, ela revirava os olhos. O silêncio deles falava mais do que qualquer coisa.”
“Ninguém falava diretamente. Ninguém se colocava. Ninguém se expressava.”
A família funcionava no cotidiano — pagavam contas, cumpriam horários, viviam sob o mesmo teto — mas emocionalmente estavam apartados. “Eram funcionais, mas tóxicos uns com os outros. O tipo de toxicidade que é silenciosa. Que mata sem estardalhaço.”
Foi aí que Wilsius decidiu trazer o RPG como intervenção. Mas não qualquer RPG. A escolha foi Violentina, o jogo experimental e visceral criado por Eduardo Caetano (também autor de Meu Brinquedo Preferido), onde os personagens são construídos a partir de adjetivos como “violento”, “melancólico” ou “traidor”, e os conflitos se resolvem com dados e brutalidade narrativa.
“Violentina é um sistema que, acho, ninguém usaria pra trabalhar com terapia familiar. É cru. É violento. É visceral. Justamente por isso, era perfeito.”
A proposta parecia radical — mas funcionou desde o primeiro momento. Ao construir os personagens, cada membro da família vestiu uma sombra. Não a sombra no sentido moral, mas no sentido junguiano: o conteúdo psíquico reprimido, recusado, não dito. “Eles entraram. Eles vestiram a própria sombra. Cada um, no seu tempo, se expôs mais ali do que em meses de sessões tradicionais.”
A sessão virou teatro de verdades. As máscaras sociais caíram — não sob confronto direto, mas por meio da ficção. Cada fala dita na boca de um personagem era, de algum modo, um grito represado da vida real. E foi nesse jogo — com seus dados, estalos e absurdos — que a escuta aconteceu.
“Foi vivo. Foi verdade. Foi a primeira vez que eles se disseram coisas que nunca tinham conseguido dizer de outra forma.”
“Era a primeira vez que falavam sem precisar se defender.”
A sessão com aquela família não foi sobre dados nem acertos críticos. Foi sobre poder dizer, enfim, o que antes só se pensava. Cada personagem — visceral, exagerado, grotesco — serviu como intermediário simbólico de algo não dito. “Eles vestiram a própria sombra”, Wilsius havia dito. Mas mais do que isso: encarnaram, pela ficção, papéis que recusavam na vida real.”
O jogo, então, tornou-se espelho invertido. E o conflito, que no cotidiano vinha abafado por sarcasmos ou silêncios, pôde ser encenado. Não como acusação, mas como drama compartilhado. Um espaço onde os gestos exagerados do personagem liberavam a fala retida da pessoa.
A condução exige tato, mas também firmeza. Ele oferece a proposta como experiência de escuta, não como recreação. “Não se trata de fazer todo mundo se divertir — trata-se de permitir que falem. Que se ouçam com um intermediário simbólico entre eles.”
“O dado vira mediador. O personagem vira confessionário.”
E para quem vive uma dinâmica familiar tóxica, Wilsius é direto: o RPG não resolve os conflitos, mas pode ser a ferramenta que reabre canais. Onde o jogo permite dramatizar sem punir. Você pode ser cruel no personagem sem ferir o outro diretamente. E depois, a partir disso, perguntar: por que isso me saiu com tanta facilidade?
A metáfora vira diagnóstico. A ação vira insight. E, ao fim, não se trata de salvar a família, mas de devolver-lhes a possibilidade de diálogo — ainda que comece pela fantasia. A ficção é a primeira língua da escuta. O RPG só nos ensina a falá-la de novo.
Limites e Riscos do RPG como Ferramenta Terapêutica
“O RPG serve à clínica. Ele não é a clínica.”
A pergunta exige precisão. E Wilsius não tergiversa. “Fatores de risco e limite — isso a gente precisa observar bastante.” Sua fala não romantiza o método. Ao contrário: sua prática é firmemente ancorada em acompanhamento clínico, planejamento terapêutico e avaliação constante de riscos.
“Fuga e desassociação — é uma lanterninha que a gente precisa ligar.”
A metáfora é clara: nem toda imersão é saudável. A fantasia, quando se sobrepõe à escuta, pode deixar de ser metáfora e virar negação. Por isso, Wilsius é categórico quanto ao papel do RPG no setting terapêutico: “O RPG serve à clínica. Ele não é a clínica.”
Essa distinção é central para entender sua abordagem. O jogo não é a base, nem o ponto de partida. Ele é uma ferramenta dentro de um processo terapêutico já em curso. “O processo terapêutico já está acontecendo quando você leva o RPG pra terapia. Você já tem uma certa visão sobre aquele paciente.”
“É diferente de alguém chegar aqui hoje e dizer ‘quero fazer RPG terapia com você’, e a gente começar um trabalho nesse sentido.”
Para Wilsius, o RPG não é uma proposta genérica, mas uma intervenção pontual, com objetivo definido. Ele só é introduzido quando há clareza clínica sobre o que se pretende alcançar — e quando os riscos de regressão, retraumatização ou fuga foram devidamente avaliados.
O critério que define o uso da ferramenta é simples: “Cumprir o objetivo terapêutico.” Quando esse objetivo é alcançado, o RPG se retira. A clínica permanece. O símbolo dá lugar à elaboração.
“Reencenação traumática é um outro fator de risco. Às vezes você fica no looping daquele trauma.”
Esse é um dos pontos mais delicados: o RPG, ao dramatizar conteúdos simbólicos, pode inadvertidamente reencenar cenas de dor ainda não integradas. O risco é que o paciente reviva o trauma sem atravessá-lo — ficando preso à dor, e não à sua elaboração. “A gente tem que estar atento a essa construção. A essa vivência. Pra que a gente não leve o paciente a ficar nesse looping de sofrimento. A essa exposição crua.”
Wilsius também aponta limites técnicos. “Quadros mais psicóticos também são complexos. E alguns transtornos de personalidade também são mais difíceis de administrar.” Nesses casos, o RPG exige mais do que técnica lúdica: exige profundo conhecimento clínico e leitura constante da estabilidade do paciente. “Por isso precisa ter o acompanhamento terapêutico anterior. Justamente pra você ter uma ideia de até onde pode ir.”
“Você precisa saber até onde pode ir. O RPG precisa ter direção clínica. E precisa saber parar.”
E, quando isso acontece, ele para. Sem trauma, sem apego. “Nunca tive nenhum caso onde o trabalho com o RPG trouxesse algum malefício, alguma dificuldade. Mas já tive caso onde, no meio da campanha, o RPG já não era mais útil.”
O paciente estava entretido. Estava envolvido. Mas a ferramenta não estava mais servindo ao processo. “Então eu sentei, reavaliei, e a gente tirou essa ferramenta. Demos continuidade ao processo terapêutico, mas sem o RPG.”
O jogo não é indispensável. É circunstancial. É poderoso, sim — mas não absoluto. E essa maturidade clínica é o que sustenta a prática de Wilsius: uma escuta que escolhe a fantasia com propósito, mas nunca por hábito.
Curiosamente, o paciente desse caso — o que precisou deixar o RPG para trás — acabou reencontrando o jogo de outro jeito. “Foi interessante. Porque esse paciente depois se tornou mestre de RPG.”
O jogo saiu da clínica. Mas permaneceu como linguagem. Como artefato simbólico. Como ferramenta de vida.
O futuro da Psicoterapia através do RPG
Você atua há duas décadas como psicólogo — e é visível sua paixão tanto pela clínica quanto pelo RPG como ferramenta simbólica. Com essa experiência acumulada, como você vê o futuro do RPG na terapia no Brasil? Já sente uma aceitação maior por parte dos colegas e da sociedade?
“O adulto foge do lúdico. Mas é o lúdico que pode curar.”
Wilsius suspira brevemente antes de responder. É uma pergunta sobre tempo — e sobre mudança. “Temos pontos interessantes”, começa. “Há uma aceitação… boa até.” E não diz isso por otimismo vazio, mas por constatar, na prática, o crescimento do interesse.
“Tem muito psi que já está procurando sobre isso. Tem psis criando sobre isso. Trazendo a ciência em si.”
Mas o entusiasmo vem com responsabilidade. Para Wilsius, não basta experimentar; é preciso validar. Formalizar. “Não adianta a gente só postar. Não adianta só praticar. Tem que transformar isso em ciência. Produzir artigo científico. Produzir relatório da forma correta. Fazer comprovação da nossa atuação.”
A fala é clara: o futuro do RPG na clínica não depende apenas de bons atendimentos — depende de metodologia, de sistematização e de publicação. E esse movimento, ele garante, já começou. “A gente já tem bons exemplos disso acontecendo. Em diversas abordagens. Não só na Jungiana, que é o meu caso.”
No entanto, há um obstáculo profundo — e não é técnico. É cultural. É geracional. “Eu acho que o principal entrave é o adulto. É a visão do adulto.” E aqui, Wilsius toca em uma ferida aberta do imaginário moderno: a recusa do brincar.
“O adulto foge do lúdico. A gente é ensinado a deixar o lúdico lá fora.”
Em um comentário durante a entrevista, lembrei a célebre crítica de O Pequeno Príncipe — sobre como os adultos esquecem a criatividade. Wilsius concorda sem hesitação. “Às vezes a gente não entende que é esse lúdico que vai trazer a cura.”
“O problema não é o método. É o medo de ser ridicularizado.”
Apesar disso, ele acredita que o RPG está em expansão. “Já tem muita gente utilizando. Tanto como ferramenta, quanto como clínica. Depende da visão de cada um.” O uso pode variar — e ele não impõe um modelo único. O importante é que haja seriedade e escuta.
Mas para que esse movimento avance, é preciso algo mais: coragem. “Só precisa que nós, psis, tenhamos a ousadia de colocar isso pra fora. Às vezes a gente tem medo de não ser visto como igual. E isso dificulta um pouco.”
“Ser ousado, nesse caso, é só lembrar que brincar é uma forma de dizer a verdade.”
A entrevista poderia terminar aqui — com uma constatação de que o RPG na clínica está crescendo, apesar do ceticismo. Mas Wilsius não encerra com certezas. Ele prefere deixar uma pergunta no ar. Um símbolo, talvez.
Porque, no fundo, sua proposta não é fazer com que a psicologia aceite o RPG. É fazer com que a psicologia se lembre que toda transformação começa com uma história. E que jogar — como contar — é uma forma de existir.
Desafios e Aprendizados: RPG Como Ferramenta Terapêutica
Wilsius: tem algum conselho que você daria para psicólogos que estão nos acompanhando e gostariam de experimentar o RPG como ferramenta, mas ainda têm receio de começar? Quais seriam os primeiros passos práticos que você sugeriria para que essa abordagem fosse introduzida com responsabilidade no consultório — ou no trabalho de outros colegas?
“Não adianta criar o personagem se ele não vai pra aventura.”
Wilsius sorri, mas não oferece atalhos. Sua orientação, como em toda a entrevista, parte do compromisso com a escuta, com a clínica e com a responsabilidade técnica. “Eu vejo algumas possibilidades. A primeira é: volta pra dentro.”
“O que, dentro da tua prática clínica, o RPG vai trazer? É um desejo seu? Você se vê capaz disso?”
O ponto de partida, segundo ele, não é o dado — é o desejo. O interesse genuíno. A pergunta ética. “Você pode até não ter ainda o conhecimento, mas precisa ter clareza da tua abordagem. Que aproximações você encontra com esse roleplay? Como você transforma isso em ferramenta clínica?”
A resposta não está na mecânica, mas na teoria. E não é o paciente quem exige isso — é o terapeuta quem precisa estar ancorado. “Pro paciente, pouco importa se você é comportamental, psicanalista, junguiano. Quem tem que ter essa base é você.”
“Você precisa casar a tua abordagem com o RPG — pra servir à tua clínica.”
Para quem não quer ou não pode fazer essa ponte sozinho, Wilsius indica o caminho da leitura. “Vai ler quem já fez esse trabalho. Tem muito material. Tem muito artigo científico. Tem livro. Eu mesmo tô escrevendo um.” Ele explica que seu livro não será técnico no sentido clássico, mas baseado em sua vivência — uma tentativa de compartilhar a prática que construiu ao longo dos anos.
A segunda etapa, então, é buscar referências. E a terceira é, inevitavelmente, testar. “Se permitir testar.”
Eu comentei: “Não adianta ter toda a teoria se a gente não faz o teste. Não adianta criar o personagem se ele não vai pra aventura, correto?” Wilsius apenas concorda, sorrindo.
“Você precisa ir pra aventura. Mas com ética. Com ciência.”
Ele finaliza com uma oferta prática — e um lembrete de humildade: “Eu não ministro curso. Mas ofereço supervisão. Eu te ajudo a encontrar a tua forma de utilizar o RPG. Pode ser parecida com a minha, pode ser diferente. Mas o ideal é que seja a tua.”
“Não é sobre copiar um método. É sobre encontrar o teu. E fazer disso uma ferramenta com ética — e com base científica.”
RPG Como Forma de Humanização e Resistência ao Mundo Exaustivo
Saindo da clínica, mas ainda pensando na psique humana: você costuma falar sobre adultos exaustos da própria performance, da própria existência. Vivemos uma era de burnout, ansiedade generalizada, depressão em alta. Como você enxerga o RPG, fora do ambiente terapêutico, como forma de resistência a esse modo exaustivo e mecanizado de viver? Qual é o papel da fantasia, da imaginação e do jogo na humanização do cotidiano? E mais: como o RPG pode ser ferramenta preventiva de saúde mental para essa nova geração — que parece ter tudo, mas está perdida como nunca?
“O RPG é um estado de presença. E a presença é resistência.”
Wilsius não responde com teoria. Responde com imagem. “Cara, é um espaço de respiro.” E em poucas frases, reconstrói uma cena reconhecível por qualquer adulto do século XXI.
“Imagina aquela semana exaustiva de trabalho. A semana onde a Lei de Murphy reina na tua vida. Onde tudo que podia ter dado errado… deu errado.”
Nesse cenário colapsado — onde a máquina da produtividade engole o sujeito —, o RPG aparece como fresta. “Mas aí, você tem três horas. Duas horas. Uma hora que seja. E você senta pra construir uma história. Porque dois ou três amigos vão vir na tua casa. Ou você vai logar. E você vai jogar online.”
Durante esse tempo, algo se suspende. Não é escapismo. É respiração. “Durante aquele tempo, tudo aquilo ali ficou pra trás. Você respira outra coisa. Você é outra coisa. Você vive outra coisa.”
“E quando você fecha a sessão, os seus problemas continuam lá. Mas você é outro.”
O que muda não é o mundo — é o sujeito. A possibilidade de se restabelecer emocionalmente por meio da ficção, da colaboração, do improviso. “Você teve condição de respirar. E se restabelecer. Um pouco mais.”
Para Wilsius, isso não é específico do RPG. Mas o RPG, entre as atividades lúdicas, carrega um diferencial poderoso: a presença ativa. “O brincar, o jogar, o lúdico — tudo isso precisa ser resgatado no adulto.”
E essa recuperação começa cedo. Ele conta uma história real: “Essa semana, um amigo me perguntou: ‘Cara, adoro RPG. Mas não consigo passar RPG pros meus filhos. Eles odeiam RPG.’” A resposta foi simples: “Cara, teu filho tem cinco anos. Como assim ele odeia RPG?”
O amigo insistiu: “Ele não gosta, cara.” E Wilsius fez uma pergunta estratégica: “Você conta história pra ele toda noite?” A resposta foi afirmativa. Então a orientação veio: “Faz o seguinte. Senta com ele. Conta a história. Mas esquece o roteiro. Co-narra. ‘E aí, o que o príncipe fez agora?’ ‘O que tinha na beira da lagoa?’ Deixa o molequinho narrar. Co-narrar a história.”
“É assim que você planta a raizinha do RPG nessa nova geração.”
A fantasia, nesse caso, não é sistema. É linguagem. E ela pode ser leve. Simples. “A gente tem sistemas muito simples. Que a mecânica cabe num guardanapo.” O que importa não é o dado — é a permissão. O acesso simbólico à imaginação. “Isso a gente precisa trazer de volta. Essa simplicidade. Em se permitir presença.”
“O mais fantástico do RPG é a presença.”
Neste ponto da conversa, eu comento sobre O Pequeno Astralnauta — um RPG narrativo voltado para crianças pequenas, traduzido pelo Artifício RPG e disponível gratuitamente na DMs Guild. O material, escrito por um oficial da marinha norte-americana, trabalha com sessões curtíssimas, parágrafo a parágrafo, em aventuras feitas sob medida para crianças de até cinco anos.
Wilsius se anima: “Depois me passa os nomes direitinho, onde eu consigo. Eu curto muito esse material. Tenho um filho agora de três anos e meio. E eu já estou convertendo a alma.” Ele ri. Mas a frase é literal. “Minhas historinhas com ele pra dormir são sempre assim.”
Mais do que entretenimento, o jogo vira vínculo. Rotina simbólica. Educação emocional.
“Isso é importante: lhe dar uma opção de respiro. De se restabelecer. Desenvolve a tua criatividade. Te ajuda a socializar.”
E, acima de tudo, te devolve a presença. Com os outros. Consigo mesmo.
“A presença é o contrário do colapso.”
Wilsius ainda cita um fenômeno em retorno: os livros-jogos, tão comuns nas décadas de 80 e 90, e agora redescobertos por uma geração que busca pausas. “Você parar, sentar e se envolver em um livro-jogo é fantástico. É uma imersão narrativa e autoguiada.”
Qual personagem que você interpreta quando não há mais ninguém assistindo?
Wilsius Norte, chegamos à última rolagem desta conversa. Você é psicólogo, cartógrafo simbólico, mestre em guiar pessoas por labirintos internos usando RPG. Sua vida é dedicada à exploração das sombras e à reprogramação do imaginário por meio de dados, narrativas e símbolos. Mas agora, nesta mesa sem dados, sem fichas e sem escudo, a pergunta que fica é esta:
O RPG é uma grande metáfora da existência: personagens são criados, aventuras são vividas, dragões internos são derrotados ou integrados, mas no fim, tudo o que resta é o artifício da narrativa construída.
Se RPG é uma metáfora para a vida, e cada um escolhe os personagens que interpreta, qual é o personagem mais difícil de sustentar: aquele que você escolhe mostrar ao mundo, ou aquele que você sabe que deveria ser, mas teme jogar?
Responda não apenas como psicólogo, não apenas como mestre, mas como jogador diante do espelho da própria sombra:
Então me diga, Wilsius:
Qual é, afinal, o verdadeiro artifício que sustenta a sua própria existência e qual personagem que você interpreta quando não há mais ninguém assistindo, quando a mesa está vazia e a luz da fantasia se apaga?
“Ser aquilo que você é… dói. Mas é uma dor que liberta.”
Wilsius faz um longo silêncio. Quando fala, é como se desmontasse as palavras peça por peça. “Cara, essa foi boa.”
Não responde com tese. Responde com cena.
“Eu sou alguém que gosta de fazer conexões. Gosto de montar blocos. Às vezes… só não fazer nada.”
Ele descreve um ritual. Após os atendimentos, no fim do dia, apaga metade das luzes do consultório, espalha legos sobre a mesa e monta, sem pressa, sem função. “Esvaziando a cabeça.”
“Teve um dia desses que eu coloquei Ray Charles, ‘Mess Around’, fiquei pulando, dançando e montando bloco. Foi um dos dias mais fantásticos pra mim. Porque eu simplesmente esqueci que existia. E só estava ali.”
O que Wilsius descreve não é um passatempo. É um estado de presença. Uma pausa do personagem social. Um tempo sem persona. Sem performance. Sem terapeuta, sem mestre, sem cartógrafo.
“Entre aquilo que a gente mostra pro mundo, aquilo que a gente aprendeu a mostrar, e aquilo que a gente sabe que precisa ser… existe uma diferença muito gritante.”
Ele fala devagar, com camadas de hesitação que não vêm da dúvida — mas da honestidade. “E isso aqui — o que a gente é — é louco. Porque muitas vezes… não é nem o que a gente pensa que é.”
Ele explica: entre o que se pensa, o que se quer, o que se espera e o que se é — há ruído. Há sombra. Há luta. “Muitas vezes a gente se concentra no que poderia ter sido. No que querem que a gente seja. E aí são as personas que a gente vai arrancando, arrancando, arrancando…”
“Até ser aquele que a gente é.”
E aí ele olha direto — mesmo pela lente da metáfora — e diz: “E ser aquilo que você é… cara, dói.”
“Mas é uma dor livre. Que liberta.”
Retorno com uma pergunta lapidar: É mais difícil ser o que se é do que mudar para o que se deseja ser?
Wilsius não titubeia. A resposta é uma só:
“É mais difícil você ser o que você é.”
Repito, com leve inversão: É mais difícil só já ser o que é, do que praticar a mudança?
“Do que praticar a mudança.”
A última ficha não caiu. Ela foi entregue. Sem escudo.
“Acredite em você. Esse fator ‘uau’ precisa ser todo dia.”
Para encerrar de vez: tem alguma pergunta que eu não fiz — mas que você gostaria que eu tivesse feito?
Wilsius respira fundo. Não há hesitação, nem pendências. “Cara, eu acho que nosso encontro foi fantástico. Acho que nosso papo foi muito, muito bom. E eu acho que o fluxo chegou até aqui. Tá completo. Tá perfeito.”
“Se ficou algo em aberto… quando a matéria [esta] sair, quando o vídeo sair, deixa o pessoal perguntar.”
A resposta dele é um convite — à continuidade. Não há respostas fechadas, só jogos que seguem. “A gente marca uma nova conversa. A gente responde nos comentários. A gente espalha a palavra.”
Eu, com a voz já misturada ao afeto da conversa, retribui com gratidão: “Wilsius, muito obrigado. Muito obrigado mesmo por aceitar esse convite, por confiar. É o primeiro vídeo do canal no sentido de entrevista.” O Artifício RPG, como ele conta, nasceu como plataforma de escrita. Mas agora, empurrado pelos leitores — e pela potência da palavra falada — entra também no território das imagens. “Vai ter vídeo, mas vai ter escrita também. Eu amo escrever. O Paulo Henrique, o Faren, ele é um escritor.”
E, olhando nos olhos invisíveis da câmera, eu agradeço. “Sua história é fantástica. Sua trajetória é incrível. Muito obrigado mesmo. Só tenho a agradecer.”
A última palavra é de Wilsius — sem técnica, sem tese. Só verdade:
“Acredite em você. Eu costumo dizer isso sempre. Nunca esqueça que você é incrível. Mesmo que você, muitas vezes, ou outras pessoas, digam que não… você é incrível.”
“Esse fator… fator uau… ele precisa ser todo dia.”
Encerro com um convite aberto ao público — não por algoritmo, mas por vínculo:
“Deixem aí dúvidas, perguntas, compartilhem situações em que o RPG salvou você. O Artifício sempre se propõe a fazer diferente do que já é feito. A gente não quer TikToks. Artigos superficiais. Entrevistas superficiais. Vídeos superficiais.”
“Compartilhe com a gente. Compartilhe — RPG é compartilhar.”
E concluo: “Não estou atrás de números. Não vou pedir like. Não vou pedir compartilhamento. Eu quero compartilhar histórias.”
“Pode ser no post. No privado. Nos nossos grupos do Whats. Mas fale. O quanto o RPG transforma. Transformou. Salvou. E salva cada um de nós.”
O vídeo original termina, mas o dado não para de rolar. Porque o RPG, nas mãos certas, não é só jogo. É reencontro. É ritual. É palavra que cura — mesmo quando parece apenas brincadeira.
E se há uma última lição que Wilsius deixou nesta mesa, ela talvez seja esta:
A fantasia não é fuga. É cartografia. E o herói, às vezes, só precisa de uma metáfora para lembrar quem é.
Quer conhecer mais sobre ele?
- Instagram: https://www.instagram.com/wnortepsi/
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