Há mudanças sutis, quase imperceptíveis, que dizem muito sobre o futuro de um jogo. E então há as que gritam, ainda que silenciosamente. O desaparecimento dos disclaimers (isenções de responsabilidades) humorísticos dos livros de Dungeons & Dragons é um desses casos. Sem alarde, sem justificativa oficial detalhada, a Wizards of the Coast simplesmente apagou da existência um pequeno detalhe que, por uma década, pontuava a leitura dos livros de regras com um toque de irreverência. Para muitos, era um resquício de um tempo em que o jogo ainda carregava um tom de brincadeira consigo. Agora, esse tom se esvai, dando espaço para um D&D mais… sério? Mais corporativo? Mais desprovido de alma?
Desde o Livro do Jogador de 2014, os disclaimers estavam lá, enfiados em algum canto da página de créditos, misturando o legalismo frio dos direitos autorais com uma piscadela ao leitor:
Disclaimer: Wizards of the Coast não se responsabiliza pelas consequências de dividir o grupo, enfiar apêndices na boca de uma face demoníaca verde sorridente, aceitar um convite para jantar com ursos-papões, invadir o salão de festas de um gigante da colina, irritar um dragão de qualquer variedade ou dizer “tem certeza?” quando o Mestre perguntar.
Pequenos momentos de humor que lembravam os jogadores de que, apesar da estrutura de regras e estatísticas, este ainda era um jogo sobre se divertir e contar histórias absurdas.
Mas a diversão, aparentemente, foi arquivada. O Livro do Jogador de 2024 saiu sem um disclaimer. O Livro do Mestre, idem. O Livro dos Monstros de 2025? Também não. O que antes era uma tradição agora virou uma relíquia, e Jeremy Crawford, principal designer de D&D, confirmou que o desaparecimento é intencional. Em sua resposta ao Polygon, mencionou que há outros “Easter eggs” nos livros, mas o disclaimer, especificamente, se foi.
O Fim de Uma Era (e o Início de Outra)
Pequenos detalhes importam. O desaparecimento dos disclaimers pode parecer irrelevante para quem joga casualmente, mas para a comunidade, soa como mais um sintoma da transformação do D&D em um produto diferente daquele que acompanhamos nos últimos dez anos. E essa percepção não vem apenas de saudosistas: os próprios jogadores sentem que o tom do jogo está mudando. A decisão de eliminar os disclaimers vem em um momento de reestruturação total do D&D, uma transição disfarçada de atualização. A Wizards insiste que não se trata de uma nova edição, mas as mudanças são profundas o suficiente para que muitos discordem dessa narrativa.
Na prática, o “D&D 2024” está consolidando um novo modelo para a marca: uma experiência menos centrada no jogo de mesa tradicional e mais focada em produtos interconectados – ferramentas digitais, novos formatos de publicação, uma ênfase maior em compatibilidade com o D&D Beyond e futuras integrações multimídia – vamos sair das palavras bonitas, está mais focado em encher os bolsos dos acionistas que nunca jogaram de grana.
E p disclaimer humorístico, que remetia a um D&D mais solto, anárquico e voltado para a cultura da mesa de jogo, não combina pra esse perfil de suga-dolar.
Os Últimos Suspiros dos Disclaimers
Antes de desaparecerem completamente, os disclaimers passaram por um último ciclo de publicações memoráveis. Em Phandelver and Below: The Shattered Obelisk, lançado em setembro de 2023, a Wizards brincou com o horror cósmico:
Disclaimer: Os fanáticos de Ilvaash não podem confirmar nem negar se planejam incorporar os donos deste livro a um poderoso novo império illithid. Qualquer transformação ocorrida, incluindo tentáculos no rosto, é estritamente coincidência.
Já em outubro de 2023, Planescape: Adventures in the Multiverse trouxe três disclaimers distintos, incluindo um em homenagem ao icônico personagem Morte, de Planescape: Torment:
Disclaimer (Turn of Fortune’s Wheel): A Fortune’s Wheel aceita visitantes e moedas de todos os planos, realidades e linhas do tempo. A casa não se responsabiliza por danos (financeiros, físicos, existenciais ou outros) sofridos durante jogos de azar, interações com outros hóspedes ou segurança da casa, ou por desentendimentos com a proprietária. Jogue com responsabilidade.
Disclaimer (Morte’s Planar Parade): Tudo neste livro é verdade — exceto as partes que não são. Os planos mudam, as moedas e ameaças ajustam uns detalhes, partes chatas ficam mais interessantes. Você sabe como é. O que é o quê? Você é esperto, chefe. Vai descobrir.
Disclaimer (Sigil and the Outlands): As facções da Cidade dos Portais não se responsabilizam pelos sintomas associados ao encontro acidental com ao Torax. Consulte um médico se sentir qualquer um dos seguintes efeitos: dor de estômago, náusea, pavor existencial, claustrofobia ou um impulso irresistível de filosofar sobre a natureza do multiverso.
Em janeiro de 2024, The Deck of Many Things manteve o tom caótico:
Disclaimer: Os deuses do destino não se responsabilizam por mudanças de alinhamento, mortes, maldições debilitantes, inimizades infernais, aprisionamentos ou traições súbitas, nem pela perda de valores de atributo, pontos de experiência, itens mágicos, bens físicos ou riquezas, resultantes do uso deste livro. Ora, é o Baralho de Muitas Coisas. O que esperava?
Já em maio de 2024, Vecna: Eve of Ruin trouxe uma abordagem mais sombria:
Disclaimer: Toda resistência ao Senhor da Mão e do Olho é inútil. Qualquer tentativa de frustrar sua vontade ou suas criações é temporária, pois o Imortal removerá toda evidência de versões inferiores da realidade. Não haverá misericórdia para suas almas insignificantes, que jamais existiram.
E, finalmente, em julho de 2024, Quests from the Infinite Staircase publicou o último disclaimer da 5ª edição:
Disclaimer: A Wizards of the Coast não se responsabiliza por interpretações duvidosas de desejos mal formulados concedidos por gênios nobres ou outras entidades todo-poderosas. Por favor, envie todas as reclamações sobre desejos mal interpretados ao seu Mestre em forma de uma carta fortemente (e cuidadosamente) redigida.
A Comunidade Reage – Entre Indignação e Desencanto
As reações foram previsíveis. Nas redes sociais, fóruns e grupos de discussão, muitos fãs lamentam o desaparecimento dos disclaimers. “Por que Jeremy está determinado a extrair até a última gota de sabor do 5e?“, escreveu um usuário indignado. Outro comentou que os disclaimers se tornaram uma obrigação sem necessidade para a equipe de design, e talvez por isso tenham sido removidos. O consenso geral é de que o sumiço dos disclaimers é um reflexo da reformulação maior pela qual D&D está passando – e que essa reformulação nem sempre está sendo bem recebida.
Outros apontam que, ao longo dos anos, os disclaimers perderam sua graça, tornando-se previsíveis ou sem inspiração. “É difícil manter uma piada fresca por uma década”, observou um fã. Alguns ainda encaram a mudança como irrelevante ou até positiva, argumentando que preferem um D&D sem humor forçado. Mas mesmo esses reconhecem que a remoção marca um momento de transição.
O Que o D&D Está Perdendo?
Os disclaimers nunca foram essenciais para as regras ou mecânicas do jogo. Eram apenas um detalhe. Mas detalhes importam, porque ajudam a definir o tom e a identidade de um jogo. O D&D da década passada era um jogo que não se levava tão a sério. O D&D que estamos vendo emergir é um jogo diferente. Talvez seja um D&D mais profissional, mais limpo, mais voltado para um mercado digital e massificado. Mas será que também é um D&D mais frio, menos humano?
A Wizards pode dizer que a essência do jogo continua a mesma. Mas quando cada detalhe que fazia D&D parecer um jogo escrito por fãs apaixonados começa a desaparecer, é impossível não se perguntar: esse ainda é o mesmo D&D?